Crítica | Pai Mãe Irmã Irmão: Três histórias, um mesmo desconforto
MUBI/Divulgação

Crítica | Pai Mãe Irmã Irmão: Três histórias, um mesmo desconforto

Família é aquela coisa: amamos, suportamos, fugimos, voltamos, fingimos entender – e, no meio disso tudo, percebemos que o afeto raramente é simples. Pai Mãe Irmã Irmão, novo longa de Jim Jarmusch, parte exatamente dessa confusão afetiva que nos une e nos distancia em igual medida. O diretor transforma os silêncios, os gestos incompletos e os diálogos quebrados entre parentes em pequenas epifanias sobre o convívio, a ausência e a estranha ternura de quem nunca soube dizer “eu te amo” sem gaguejar.

Dividido em três segmentos – “Pai”, “Mãe” e “Irmã Irmão” –, o filme funciona como uma antologia sobre laços de sangue que resistem à convivência e sucumbem à familiaridade. Cada parte é autônoma, mas conectada por detalhes quase invisíveis: o fio vermelho que aparece em cada história, a citação a um lugar chamado “Nowheresville”, e, acima de tudo, a presença de um sentimento comum de desencontro. Jarmusch, fiel ao seu estilo minimalista e à ironia melancólica que marcou obras como “Sobre Café e Cigarros” e “Flores Partidas”, volta a brincar com o formato episódico, mas agora voltado inteiramente para o tema da família – e para a solidão que sobrevive mesmo dentro dela.

O primeiro episódio, “Pai”, abre o filme com um tom de comédia seca, onde o humor nasce não de piadas, mas do constrangimento. Um patriarca decadente, interpretado por Tom Waits, tenta recuperar o contato com os filhos através de conversas banais que giram em torno de relógios, cadeiras e lembranças desbotadas. A mise-en-scène, aqui, é impecavelmente construída: o enquadramento mantém a distância entre os personagens, como se a câmera também hesitasse em se aproximar.

Crítica | Pai Mãe Irmã Irmão: Três histórias, um mesmo desconforto
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A fotografia aposta em tons quentes e artificiais, que contrastam com o frio emocional que domina o ambiente. É Jarmusch em sua forma mais sarcástica, mostrando que o afeto, às vezes, se esconde nas conversas mais triviais.

No segundo segmento, “Mãe”, o tom se torna mais contemplativo. A comédia permanece, mas o riso se torna mais nervoso, quase um disfarce para o incômodo. A direção de arte acentua essa mudança: cores pastéis substituem os contrastes vibrantes do primeiro ato, e a câmera parece se mover com mais pudor, como se tivesse medo de invadir um espaço íntimo demais. A montagem, cadenciada e paciente, permite que o espectador perceba o tempo entre uma fala e outra – o tempo do desconforto, do não-dito. É nesse vazio que o filme encontra sua força. Jarmusch mostra que as relações familiares, quando despidas do discurso idealizado, revelam algo mais complexo: a inércia do afeto.

Mas é em “Irmã Irmão” que Pai Mãe Irmã Irmão se transforma completamente. O tom cômico cede espaço a uma melancolia delicada, e o filme parece respirar de outro modo. Essa terceira parte é mais longa, mais lenta, e certamente mais divisiva. Há quem veja nela um desvio de rumo; há quem perceba, justamente ali, o coração do projeto. O diretor adota um estilo mais contemplativo, com planos longos e estáticos, lembrando o cinema de Ozu e Tarkovski – mas filtrado por um humor excêntrico e sua sensibilidade urbana. A fotografia aposta em uma luz difusa, quase espectral, que transforma o cotidiano em uma espécie de limbo emocional.

Os protagonistas, dois irmãos gêmeos que voltam à casa dos pais após a morte da mãe, representam o ápice do tema da incomunicabilidade. Eles falam pouco, se olham muito e parecem existir num tempo próprio, suspenso entre o luto e a lembrança. É aqui que Jarmusch alcança a pureza que o acompanha desde os anos 1980: a de um cineasta interessado não nas grandes revelações, mas nos pequenos gestos que sustentam o mistério de estar vivo — e junto.

Tecnicamente, o filme reafirma o domínio de Jarmusch sobre o ritmo e o espaço. Sua montagem privilegia o olhar errante, o momento que parece não levar a lugar nenhum. As pausas têm tanto peso quanto as falas. Há uma consciência aguda da artificialidade: cenários que soam falsos, fundos digitais obviamente sintéticos, transições que parecem brechas no próprio filme. Tudo isso é intencional. Ele não esconde o artifício – brinca com ele.

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Essa postura é reforçada pelo trabalho sonoro. O silêncio é quase um personagem, interrompido apenas por ruídos cotidianos – o zumbido de um ventilador, o som de passos em madeira, o tilintar de um copo. Quando a trilha surge, ela é discreta, um murmúrio que acompanha os vazios, não as emoções. Essa contenção dá ao filme uma textura meditativa, mas nunca pretensiosa. Há ironia, há leveza, há o humor seco que sempre foi marca registrada do diretor.

É curioso perceber como, mesmo após décadas de carreira, Jarmusch continua fiel à própria indiferença à pressa. Seus planos longos e conversas aparentemente banais não são tédio: são respiração. Ele faz cinema como quem observa um amigo falar sobre o tempo, sabendo que, no fundo, fala de outra coisa. Em Pai Mãe Irmã Irmão, esse olhar encontra sua expressão mais humana e, talvez, mais desarmada.

No fim, o que fica é a percepção de que a família – no cinema ou na vida – é sempre uma ficção inacabada. Jarmusch parece dizer que o amor é feito de mal-entendidos, e que a convivência é apenas uma maneira de administrá-los. O filme encerra com uma nota agridoce: não há catarse, apenas a continuidade de um afeto silencioso, imperfeito e, por isso mesmo, profundamente verdadeiro.

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