Em Ponto Oculto, a cineasta germano-curda Ayşe Polat tece uma narrativa tão densa quanto os segredos que ela expõe. O filme, um thriller político com nuances sobrenaturais, se utiliza desses artifícios ficcionais do cinema para cutucar feridas históricas e questiona até que ponto a vigilância estatal pode corroer a alma de uma sociedade. Com uma estrutura narrativa fragmentada, que lembra “Rashomon”, de Akira Kurosawa, em sua multiplicidade de perspectivas, a diretora constrói um quebra-cabeça onde cada peça revela um pouco mais do abismo moral em que seus personagens estão imersos.
Logo nos primeiros minutos, somos apresentados a uma equipe de documentaristas alemães que viaja ao leste da Turquia para registrar a história de Hatice, uma idosa curda que, há 26 anos, prepara a sopa favorita do filho desaparecido – um ritual doloroso e poético que simboliza a resistência da memória frente ao apagamento violento. A cena, filmada com um naturalismo quase documental, é um golpe certeiro no espectador: não há como não se comover com a quietude daquela dor. A fotografia de Patrick Orth (“Toni Erdmann”) captura a paisagem árida e os rostos marcados com uma sobriedade que contrasta com a tensão latente. A luz fria e os enquadramentos apertados sugerem que algo ou alguém sempre está observando, mesmo quando não vemos.
E é justamente essa sensação de vigilância constante que define o tom do filme. A narrativa se divide em três capítulos, cada um mostrando os mesmos eventos sob olhares distintos. Primeiro, acompanhamos a equipe de filmagem, que rapidamente se vê enredada em um sequestro político. Depois, a perspectiva muda para Zafer (Ahmet Varlı), um agente de baixo escalão dos serviços secretos turcos, cuja paranoia cresce à medida que sua filha, Melek, começa a descrever encontros com um “homem invisível” que sabe demais. Por fim, a trama se fecha com um terceiro ato que desvenda os mistérios – talvez de forma excessivamente didática, mas sem perder o impacto.

A escolha de Polat por utilizar imagens de câmeras de segurança, celulares e filmagens escondidas não é só uma decisão estilística, mas uma metáfora visual sobre seu tema-base. Em um mundo onde o Estado tudo vê, não há verdadeiros “pontos ocultos” – apenas ilusões de privacidade. A montagem de Serhad Mutlu e Jörg Volkmar trabalha essas camadas de forma precisa, alternando entre planos estáticos (como os de vigilância) e movimentos mais orgânicos, criando um ritmo que oscila entre o claustrofóbico e o hipnótico.
No entanto, o verdadeiro trunfo do filme está na pequena Melek, interpretada pela impressionante Çağla Yurga. Seus olhos grandes e expressivos carregam um misto de inocência e terror, e sua relação com o “amigo imaginário” é o que eleva a trama para além do thriller convencional. A sugestão de que o passado violento da Turquia – com seus esquadrões da morte e desaparecimentos políticos – pode estar assombrando as gerações seguintes é trabalhada com maestria. A menina funciona como um portal entre o mundo dos vivos e o dos mortos, entre a história oficial e a que foi apagada.
Ahmet Varlı, como Zafer, também merece destaque. Seu desempenho oscila entre a frieza burocrática do funcionário do Estado e o desespero de um pai em pânico. Em certos momentos, sua atuação beira o exagerado, mas isso parece intencional – afinal, seu personagem está enlouquecendo sob o peso da culpa e do medo. A cena em que ele revira a casa em busca de câmeras escondidas, enquanto a filha sussurra segredos que não deveria saber, é de uma tensão quase insuportável.
Se há uma falha em Ponto Oculto, é justamente a necessidade de explicar demais no final. O filme poderia ter mantido certas ambiguidades, permitindo que o espectador conectasse os pontos sozinho. Ainda assim, a conclusão não diminui o impacto da mensagem central: a violência de Estado não some, ela apenas se transfere, como uma maldição hereditária.
A fotografia de Orth brilha especialmente nas sequências noturnas, onde a escuridão parece engolir os personagens, deixando apenas seus rostos iluminados por telas de celulares ou pela luz bruxuleante de lâmpadas públicas. Há um contraste deliberado entre o antigo (as ruínas da cidade onde a história se passa) e o moderno (a tecnologia de vigilância), reforçando a ideia de que o controle é uma constante, independentemente da época.
Ayşe Polat não entrega um discurso panfletário, mas também não se esquiva da denúncia. Ela mostra como a opressão não é um evento isolado, e sim um ciclo que se repete, alimentado pelo silêncio e pelo medo. A cena final, que ecoa o início do filme, fecha o círvio de maneira perturbadora: afinal, quantas Hatices ainda estão esperando, quantas Meleks ainda carregarão fantasmas que não lhes pertencem?
Ponto Oculto é mais que um thriller bem-executado – é um espelho segurando diante de sociedades que preferem não se enxergar. E, como todo bom espelho, ele não reflete apenas o que está lá, mas também o que foi apagado.
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