Em tempos de conflito, a arte muitas vezes surge como um refúgio, uma forma de resistência ou até mesmo um espelho da alma humana dilacerada pela violência. É essa dualidade — a delicadeza da criação artística frente à brutalidade da guerra — que poderia ser o cerne de um documentário profundo e reflexivo. No entanto, Porcelain War acaba por se perder em uma narrativa simplista, nada crítica e emocionalmente manipuladora, deixando de explorar as nuances que poderiam torná-lo memorável.
A premissa é promissora: artistas ucranianos, em meio à guerra contra a Rússia, continuam a criar esculturas de porcelana, mesmo enquanto são arrastados para o front. A ideia de que a arte persiste, mesmo nos momentos mais sombrios, é poderosa. No entanto, o filme rapidamente abandona essa linha para se concentrar em cenas de combate, drones bombardeando alvos e uma retórica maniqueísta que divide o mundo entre “bons” e “maus”. A porcelana, símbolo inicial de fragilidade e resistência, acaba relegada a um papel secundário, quase como um adereço descartável.
Um dos momentos mais intrigantes — e perturbadores — do documentário ocorre quando os artistas pintam um drone, transformando um instrumento de morte em uma tela para sua expressão criativa. Essa cena poderia ser o ponto de partida para uma discussão profunda sobre a relação entre arte e violência, sobre como a estética pode ser usada para suavizar ou justificar a destruição. No entanto, os diretores Slava Leontyev e Brendan Bellomo, optam por não explorar essa contradição. Em vez disso, o drone pintado é mostrado em ação, destruindo um tanque inimigo, enquanto os artistas observam com uma mistura de fascínio e satisfação. A complexidade moral desse ato — criar beleza para embelezar a morte — é ignorada, e o espectador fica com a sensação de que o filme prefere glorificar a guerra a questioná-la.

Essa escolha narrativa reflete uma tendência preocupante no cinema contemporâneo: a fetichização da guerra. François Truffaut já alertava que não existe um filme verdadeiramente anti-guerra, pois a simples representação visual do conflito tende a glorificá-lo. Aqui, essa máxima se confirma. As cenas de combate, filmadas com uma estética quase heroica, são intercaladas com animações fofas e uma trilha sonora que oscila entre o épico e o ridículo. O resultado é uma experiência dissonante, em que a brutalidade da guerra é ao mesmo tempo denunciada e celebrada.
A falta de profundidade na exploração dos temas centrais é uma das maiores falhas do documentário. A arte, supostamente o fio condutor da narrativa, é tratada como um hobby, não como uma vocação ou uma forma de resistência. Os artistas são mostrados criando esculturas de porcelana e distribuindo-as como amuletos para os soldados, mas essa prática é apresentada de forma superficial, sem qualquer reflexão sobre seu significado simbólico. O que significa criar objetos delicados em meio à destruição? Como a arte pode servir tanto como consolo quanto como ferramenta de propaganda? Essas perguntas ficam sem resposta, e o espectador é deixado com a sensação de que o filme perdeu uma oportunidade única de mergulhar na complexidade da condição humana em tempos de guerra.
Outro aspecto problemático é a representação dos personagens. Os ucranianos são retratados como heróis incontestáveis, enquanto os russos são reduzidos a caricaturas de vilões. Essa simplificação não apenas desumaniza o inimigo, mas também empobrece a narrativa. A guerra é, por natureza, um fenômeno complexo, com múltiplas camadas de culpa e responsabilidade. Ao ignorar essa complexidade, o filme acaba por reforçar estereótipos e perpetuar uma visão maniqueísta do conflito.

A trilha sonora, composta por uma banda ucraniana popular, é outro elemento que merece crítica. Embora tematicamente apropriada, sua utilização é muitas vezes desajeitada, com músicas épicas tocando em cenas de destruição e morte. Essa escolha estética, longe de amplificar o impacto emocional das cenas, acaba por banalizar a violência, transformando-a em espetáculo.
Curiosamente, o filme parece mais interessado em agradar a um público já convencido de sua mensagem do que em provocar reflexão ou debate. A narrativa é construída de forma a pregar para o coro, sem qualquer esforço para engajar aqueles que podem ter visões diferentes ou mais críticas. Essa falta de ambição intelectual é particularmente frustrante, dada a riqueza do tema proposto.
No final, o documentário encerra com uma metáfora fácil: “A Ucrânia é como porcelana: fácil de quebrar, mas impossível de destruir”. A frase, embora poética, soa vazia diante da superficialidade com que o filme trata seus temas centrais. A arte, que poderia ser o coração da narrativa, é reduzida a um mero acessório, enquanto a guerra é glorificada em toda a sua brutalidade.

E assim, o filme que prometia explorar a relação entre arte e guerra acaba por se tornar mais um exemplo de como o cinema pode falhar em capturar a complexidade da experiência humana. A porcelana, símbolo de delicadeza e resistência, é quebrada não pela guerra, mas pela incapacidade dos cineastas de dar a ela o destaque que merece. E, nesse processo, perde-se não apenas uma oportunidade de reflexão, mas também a chance de criar algo verdadeiramente memorável.
No início, a promessa era de um exame profundo do papel da arte na alma das pessoas durante a guerra. No final, o que resta é um retrato simplista de um conflito complexo, onde a arte é relegada a segundo plano e a guerra é glorificada. E, assim, o ciclo se completa: o filme que poderia ter sido uma ode à resistência humana acaba por se tornar mais um instrumento na máquina de propaganda.
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