Crítica | Prédio Vazio: Terror como laboratório de sangue, tinta e verdade
Retrato Filmes/Divulgação

Crítica | Prédio Vazio: Terror como laboratório de sangue, tinta e verdade

O cinema, quando realmente vivo, não pede licença. Ele invade, desconstrói, exagera, provoca. E se há um filme brasileiro recente que abraça essa filosofia com unhas e dentes – ou melhor, com facas e tinta vermelha – é Prédio Vazio, do artesão do terror Rodrigo Aragão. Esse é um longa que não tem medo de tropeçar, porque seus tropeços são tão honestos quanto seus acertos são brilhantes. Aqui, o artifício não é um disfarce para a falta de verba; é a própria linguagem. As paredes do prédio Madalena não precisam parecer reais, porque o medo que ele abriga é. E é assim, entre planos que beiram o genial e momentos que escorregam no excesso, que o filme nos lembra: Cinema é artifício.

Logo de cara, o filme nos joga em um universo onde as regras do realismo foram suspensas. A fotografia, saturada até o último pixel, transforma cada cena em um quadro expressionista. A câmera, quase sempre colada ao rosto dos personagens, não nos deixa respirar. Quando recua, é para revelar cenários que parecem feitos de papel machê e pesadelos. E são, literalmente. O prédio Madalena, construído em maquete, é um personagem tão importante quanto as mães e filhas – e os fantasmas – que o habitam. Suas paredes tortas, suas portas que não levam a lugar nenhum, seu elevador vermelho, tudo conspira para criar um espaço que é menos um lugar e mais um estado de espírito.

Crítica | Prédio Vazio: Terror como laboratório de sangue, tinta e verdade
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Falando em mães e filhas, Prédio Vazio mergulha em um dos temas mais férteis do terror: a maternidade. Não a maternidade idealizada, mas a que sangra, que erra, que passa adiante seus traumas como herança maldita. Gilda Nomacce, Rejane Macedo e Lorena Corrêa entregam performances que oscilam entre o histriônico e o comovente. Há momentos em que o tom escorrega – algumas falas soam como paródia de novelas –, mas quando acerta, é de doer. A cena em que uma mãe, finalmente, liberta a filha de um ciclo de violência é tão melodramática quanto poderosa. E é aqui que o filme arrisca mais – e, por tabela, onde mais se expõe ao fracasso. Mas quem não arrisca, não faz cinema. Só faz produto.

E arriscar, aliás, parece ter sido o lema por trás das câmeras. Prédio Vazio nasceu de oficinas de cinema, e isso salta aos olhos – não como defeito, mas como virtude. Dá para sentir o tesão de quem está aprendendo, experimentando, testando até onde a câmera aguenta. Os planos holandeses (aqueles com a linha do horizonte torta) não são usados como clichê, mas como pontuação visual. A montagem alterna entre sequências longas, quase claustrofóbicas, e cortes bruscos que mais parecem facadas. E os efeitos práticos, todos feitos na raça, são tão falsos que voltam a ser verdadeiros. Sangue que parece tinta? Claro. Feridas que lembram brinquedo? Por que não? Em um mundo onde até o terror virou sinônimo de realismo sujo, onde termos como “pós-terror” e “terror elevado” surgem para diminuir o gênero, ver um filme que abraça sua própria artificialidade é um ato de rebeldia.

Crítica | Prédio Vazio: Terror como laboratório de sangue, tinta e verdade
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Essa rebeldia, porém, tem um preço. O filme peca quando tenta ser muitas coisas ao mesmo tempo. Os múltiplos finais, por exemplo, poderiam ser um exercício de estilo, mas acabam parecendo indecisão. Algumas atuações, especialmente as dos coadjuvantes, beiram o cômico involuntário. E há momentos em que o roteiro parece mais interessado em jogar referências (“Suspiria”David LynchZé do Caixão) do que em desenvolver suas próprias ideias. Mas, novamente: quem não erra, não está tentando.

E quando acerta, é de cair o queixo. A sequência inicial, sem diálogos, é uma aula de como construir tensão com quase nada. A fotografia, que em outros filmes seria considerada exagerada, aqui é a única opção possível. E a trilha sonora, dissonante e onipresente, é como um personagem invisível – que dialoga com a presença dos fantasmas no longa, sempre à espreita. Até mesmo as escolhas narrativas mais controversas (como a subversão dos papéis de gênero no personagem de Caio Macedo) mostram um cinema que pensa, que provoca, que não quer ser só mais um.

Prédio Vazio é um filme que dá um foda-se ao pós-terror e as propostas de realismo no horror. Ele prefere ser vivo, mesmo que às custas de parecer tosco. E é nessa contradição que ele encontra sua força e sua verdade. Porque o cinema, no fim das contas, não é sobre esconder as costuras. É sobre transformá-las em arte. Cinema é artifício. E é nesse artifício que, às vezes, encontramos as verdades mais cruas.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.