François Ozon gosta de criar filmes que flertam com o melodrama, o suspense e o humor sombrio, sempre costurados por personagens que desafiam noções de certo e errado. Em Quando Chega o Outono, seu vigésimo-terceiro longa, o diretor francês troca a energia solar de “Verão de 85” pela melancolia outonal de uma protagonista que carrega mais segredos do que rugas. Michelle (Hélène Vincent), uma viúva aparentemente pacata, vive em uma vila na Borgonha, cercada por paisagens que parecem pintadas aquarela: tons terrosos, árvores douradas e uma luz que escorre suave como vinho. Mas, como os cogumelos que colhe com sua amiga Marie-Claude (Josiane Balasko), sua vida tem camadas venenosas sob a superfície.
Ozon começa o filme com um contraste deliberado: sinos de uma igreja medieval ecoam sobre imagens de arquitetura gótica, enquanto o lema da Revolução Francesa — Liberdade, Igualdade, Fraternidade — paira ironicamente sobre uma narrativa que questiona justamente esses ideais. Michelle é livre? É tratada com igualdade pela filha? A fraternidade existe numa família marcada por ressentimentos? Essas perguntas não são respondidas de forma explícita, mas permeiam cada escolha do diretor, da fotografia à montagem.
Ozon e o diretor de fotografia Manuel Dacosse (“Retrato de uma Jovem em Chamas”) usam a luz para traduzir a solidão de Michelle. Nos primeiros atos, ela é frequentemente filmada em planos abertos, diminuta em meio a cenários vazios — sua casa, a igreja, o bosque. A câmera a enquadra como se a observasse de longe, reforçando seu isolamento. Quando a filha, Valérie (Ludivine Sagnier), chega com o neto Lucas (Garlan Erlos), os closes se multiplicam, mas não para mostrar afeto, e sim tensão. O jogo de olhares entre mãe e filha é cortante: Michelle, hesitante; Valérie, carregada de reprovação.

A paleta de cores também não é aleatória. O outono, com seus vermelhos e laranjas, serve como metáfora para um ciclo que se encerra — ou para uma última chance de reinvenção. Quando Michelle serve os cogumelos (um momento filmado quase como um thriller, com cortes rápidos e sombras alongadas), a intoxicação da filha vira o ponto de virada. Ozon não mostra o hospital, apenas o silêncio pesado que se instala depois. É um exemplo de como a montagem de Laure Gardette (“Graça”) trabalha a favor da ambiguidade: o que vemos é sempre fragmentado, como a memória da própria protagonista.
Hélène Vincent, aos 81 anos, entrega uma atuação surpreemdemte. Michelle não é uma velhinha estereotipada — é uma mulher cheia de contradições. Sua devoção religiosa (ela ouve sermões sobre Maria Madalena, a “pecadora redimida”) contrasta com seu passado revelado tarde na trama: foi prostituta. A cena em que confessa isso à polícia é um dos momentos mais poderosos do filme. Ozon a filma de frente, sem cortes, enquanto a cidadezinha conservadora reage com escárnio. É um lembrete de que, mesmo na velhice, nossa história pode nos perseguir.

Josiane Balasko, como Marie-Claude, traz um contraponto cômico e trágico. Sua química com Vincent é palpável — cenas das duas colhendo cogumelos ou bebendo vinho têm uma naturalidade que só atrizes experientes conseguem. Já Pierre Lottin, como Vincent, o filho ex-presidiário, é a incógnita do filme. Sua presença física (imponente, quase ameaçadora) e sua ambiguidade moral (é ele quem vai a Paris “resolver” o problema Valérie) deixam o espectador em suspenso. Ozon não nos diz se ele é um justiceiro ou um criminoso — e essa é a graça.

Ozon é mestre em omitir. Assim como em “Swimming Pool” ou “8 Mulheres”, ele prefere sugerir a mostrar. A cena em que Vincent visita Valérie em Paris é cortada antes do clímax. Só descobrimos o resultado depois, quando Michelle recebe uma ligação. Essa escolha não é preguiça narrativa, mas um convite ao público: o que você acha que aconteceu? A resposta diz mais sobre o espectador do que sobre o filme.
A estrutura circular também é notável. Seu roteiro é econômico: diálogos curtos, gestos que valem mais que palavras. Quando Michelle abraça o neto no cemitério, a câmera se afasta lentamente, como se respeitasse aquele momento íntimo. É uma direção que sabe quando interferir e quando recuar.
Quando Chega o Outono poderia ser um drama sobre arrependimento, mas Ozon o transforma em algo mais subversivo: um filme sobre a liberdade que vem quando aceitamos nossos erros. Michelle não é santa nem vilã — é humana. E talvez essa seja a maior revolução do filme. Num cinema que muitas vezes reduz idosos a caricaturas, Ozon dá a eles complexidade, desejo e até uma pitada de perversidade.
Quando Chega o Outono não é um filme sobre envelhecer. É sobre o que carregamos conosco quando as folhas caem, e o que estamos dispostos a deixar para trás. E, nesse outono cinematográfico, Ozon prova que até os pecados mais antigos podem ganhar novos significados — desde que haja coragem para enfrentá-los.
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