Às vezes, a promessa de escapar de uma vida banal pode abrir portas para o abismo. É justamente essa ilusão de aventura que move duas jovens francesas em Rabia – As Esposas do Estado Islâmico, primeiro longa de Mareike Engelhardt. O longa se desenha, inicialmente, como um gesto de rebeldia contra o tédio cotidiano rapidamente se transforma em uma jornada de clausura e violência, marcada por escolhas visuais e narrativas que buscam envolver o espectador na mesma sensação de sufocamento. Desde o início, o filme anuncia que não se trata de fé ou convicção, mas da perigosa busca por pertencimento – e é nesse terreno a obra encontra tanto sua força quanto suas fragilidades.
A direção de Engelhardt abraça um estilo contido, investindo em uma atmosfera de clausura que se reflete tanto na encenação quanto no desenho de produção. O espaço da casa feminina em que Rabia se passa é um personagem em si: um labirinto de quartos e corredores onde as mulheres vivem cercadas de regras, olhares de vigilância e uma sensação constante de cerco. A câmera, com sua proximidade calculada, insiste em acompanhar os gestos mais triviais, como se cada ação doméstica fosse carregada de tensão latente. Essa insistência em registrar o cotidiano é também um comentário sobre o confinamento – a guerra não está apenas fora das paredes, mas impregnada no silêncio sufocante da rotina.
A fotografia, por sua vez, é um dos pontos altos do filme. A paleta sombria, permeada por contrastes de luz artificial, cria um ambiente de permanente instabilidade. Há uma beleza fria que percorre a narrativa, um olhar quase pictórico que reforça a ideia de que a clausura também pode ser estetizada. Esse uso da luz, que recorta rostos em sombras e fragmenta corpos em pedaços, reflete o próprio estado das personagens com suas identidades despedaçadas, moldadas à força pela estrutura do grupo extremista. Para além do recurso visual, essa é uma forma de traduzir para o espectador a violência invisível que antecede a física.
No centro da narrativa está Jessica, interpretada com intensidade por Megan Northam. Sua trajetória é a mais explorada pelo roteiro, e o público a acompanha desde a promessa de aventura até a progressiva perda de si. A montagem, nesse sentido, opera como catalisadora da transformação; com cortes secos, rupturas temporais e elipses marcam o ritmo da degradação. Cada salto adiante expõe um novo estágio de violência ou submissão, até que a própria vítima se converta em algoz. Essa virada dramática, que deveria ser chocante, acabou parecendo… inevitável e evita que a personagem seja lida apenas como mártir. Engelhardt parece querer lembrar que o horror se reproduz em cadeia, e que, em certos contextos, a sobrevivência exige a adoção dos gestos mais cruéis.

O contraponto surge na figura da Madame, vivida por Lubna Azabal. A personagem é apresentada como um enigma: ora maternal, ora brutal, sempre orbitando entre acolhimento e tirania. Sua presença dá espessura ao roteiro, quebrando o maniqueísmo que poderia assombrar o filme. Mais do que vilã, ela encarna a ambivalência de alguém que transitou entre mundos distintos – formada em direito na França, mas entregue à lógica severa do Estado Islâmico.

Ainda assim, nem tudo se sustenta com a mesma força. O roteiro, que começa ousado ao tratar a radicalização como uma busca quase lúdica por pertencimento, acaba cedendo ao didatismo em sua reta final. As coincidências narrativas se acumulam, e a progressão de Jessica ganha contornos previsíveis, como se houvesse a necessidade de martelar uma lição moral ao espectador. Essa insistência enfraquece o impacto das imagens, que já falavam por si, e reduz a potência do arco dramático a uma sequência de provações pedagógicas. A maternidade, por exemplo, surge como um recurso excessivamente literal, que transforma a protagonista em símbolo de redenção em vez de mantê-la como corpo atravessado por contradições.
É interessante observar como a montagem, que até então operava na sugestão, se torna progressivamente expositiva. Se no início havia uma cadência que deixava espaço para a dúvida e para a respiração do espectador, no desfecho a narrativa corre para fechar os pontos com clareza quase artificial. A sensação é de que o filme não confia plenamente na inteligência de quem assiste, e precisa reiterar sua posição sobre o desfecho. Essa escolha tira parte da sutileza conquistada no percurso, ainda que mantenha a força visual até o último bombardeio que consome o espaço físico e emocional da protagonista.
O som, embora menos comentado, cumpre papel essencial nessa experiência. A trilha não se impõe com grandiloquência, mas atua como sublinhado emocional das cenas, alternando silêncio sufocante e ruídos que ecoam o clima de ameaça. É um desenho sonoro que reforça a clausura, fazendo o espectador compartilhar da mesma respiração curta das personagens. O som do ambiente, quase sempre abafado, lembra constantemente que há um mundo em guerra lá fora, mesmo quando o foco é apenas uma conversa entre mulheres na cozinha.
Rabia é, portanto, um filme de contrastes. De um lado, encontra força em sua direção contida, em sua fotografia expressiva e na entrega visceral de suas atrizes. De outro, perde parte da potência ao optar por um desfecho didático, que insiste em guiar a leitura do espectador. É um projeto que se constrói sobre a tensão entre nuance e simplificação, entre a ambiguidade das personagens e a clareza das mensagens. Essa contradição é, talvez, o que torna a experiência tão desconfortável, afinal, não estamos diante de um manifesto político puro, tampouco de um estudo psicológico, o que se vê é uma tentativa de mergulhar no coração da escuridão e, ao mesmo tempo, manter a bússola moral bem visível.
A clausura, a fotografia sombria, a montagem que acelera a degradação – tudo converge para mostrar como o impulso de fugir da mediocridade pode se transformar em prisão absoluta. Assim, Rabia – As Esposas do Estado Islâmico fecha o círculo que abre em sua introdução: não é sobre fé, nem sobre heroísmo, mas sobre o abismo que se abre quando a busca por pertencimento se encontra com a máquina da guerra.
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