Logo após o fim do grupo As Baías, em 2021, em plena pandemia de Covid-19, Raquel passou por hiato na música e focou na carreira como empresária. Uma pausa que agora, com seu retorno aos discos, pareceu fazer bem a artista e contribuiu para a maturidade que ela apresenta em “Não Incendiei a Casa Por Milagre”, seu primeiro álbum solo.

Após um passagem inicial no pop, com alguns singles lançados entre 2024 e 2025, Raquel mergulha no rock para um disco baseado em sentimentos densos. Ao longo das 7 faixas, a cantora e compositora usa a raiva como matéria prima para canções que traduzem as angústias do cotidiano e do momento histórico conturbado, ao mesmo tempo em que nunca deixa de lado a beleza a e a delicadeza.
O disco é fundamentado em dois pilares. O primeiro é o cinema de Pedro Almodóvar, de quem veio a inspiração para o título da obra, quando Raquel leu uma frase rabiscada em uma das histórias do livro Último Sonho, do cineasta, durante uma viagem à Lisboa. O universo do espanhol está refletido em toda a atmosfera do álbum. Cada faixa soa como trilha de algum de seus filmes, além da capa que traz Raquel para a estética almodovariana.
O segundo é o disco “Recanto” (2011) de Gal Costa, do qual Raquel bebeu diretamente na fonte para construir a sonoridade de “Não Incendiei a Casa Por Milagre”. Para isso, ela contou com Moreno Veloso na produção musical, que também dirigiu o álbum “Recanto Ao Vivo”; além de reunir novamente a mesma banda que tocou no disco de Gal: Pedro Sá (guitarra), Bruno Di Lullo (baixo) e Domenico Lancellotti (bateria); e fazer uma boa regravação da faixa “Autotune Autoerótico”.
O resultado dessa combinação é um disco intenso, que usa bem o peso de suas duas maiores referências para adicionar camadas à letras confessionais, escancarando humanidade e vulnerabilidade. É o caso da faixa-título em que a artista desabafa sobre memórias conflituosas embebidas pela angústia. “Jogador de Futebol” diminui o tom e parte para um clima mais romântico.
“Monopólio” é uma bela balada dramática que aponta para o rock romântico das décadas de 1950 e 1960. Em “Ao Vivo” Raquel parte para uma abordagem minimalista, explorando mais os graves dos vocais na interpretação da letra que cita os atentados do 11 de setembro como o trauma que marca toda uma geração.
A regravação de “Carne dos Meus Versos”, resgatada da época de As Bahias e a Cozinha Mineira, ganha mais peso e intensidade dentro do contexto do álbum. O encerramento é com “Vidinha”, regravação do repertório de Rita Lee que também brilha aqui e finaliza o disco em alta.
Em “Não Incendiei a Casa Por Milagre” Raquel se encontra em sua carreira solo e mostra habilidade ao partir para o roque e usar Almodóvar e Gal Costa como norteadores de um álbum que conquista pela sensibilidade, a honestidade das letras, a forma como a artista expõe vulnerabilidades sem pudor e uma sonoridade que parte para direções não óbvias e sempre instigante.
Leia também
Deixe uma resposta