Crítica | Sem nostalgia barata, FBC resgata o rap político em 'Assaltos e Batidas'
Ilustração: Keko Animal

Crítica | Sem nostalgia barata, FBC resgata o rap político em ‘Assaltos e Batidas’

Há artistas que, depois de alcançarem o sucesso, preferem repetir a fórmula. Esse, definitivamente, não é o caso de FBC. O rapper mineiro, que emplacou hits como “Se Tá Solteira” e mergulhou no funk melody em “Baile” (disco em parceria com VHOOR), poderia ter seguido o caminho mais seguro. Em vez disso, escolheu revisitar o passado com um olhar contemporâneo em Assaltos e Batidas, seu sétimo álbum. E fez isso sem nostalgia barata: resgatou o boombap dos anos 1990, mas com a maturidade de quem já experimentou de tudo, do trap ao drill, do Miami bass ao som com pinceladas de psicodelia de “O Amor, o Perdão e a Tecnologia Irão Nos Levar Para Outro Planeta” em 2023.

O disco é uma viagem no tempo, mas também um manifesto político. Produzido por Coyote Beatz, Pepito e DJ Cost, as batidas pesadas, os samples cortantes e os scratches clássicos remetem ao hip-hop da West Coast e à cena bate-cabeça brasileira dos anos 1990, influenciada por grupos como Racionais MC’s, Doctor MC’s e Cypress Hill. Porém, FBC não se limita a replicar um estilo – ele o atualiza. Em “A Voz da Revolução”, por exemplo, mistura trechos da Rádio Libertadora (de Carlos Marighella) com rimas incisivas sobre luta de classes, criando um diálogo entre passado e presente. A faixa é um chamado à ação, e o sample do discurso revolucionário funciona quase como um refrão, reforçando a urgência da mensagem.

A produção do álbum é impecável. Coyote Beatz e Pepito constroem bases que soam ao mesmo tempo clássicas e modernas, com baixos marcantes, caixas estaladas e cortes precisos de DJ Cost. Em “Você Pra Mim É Lucro”, FBC interpola “Lucro”, do BaianaSystem, para criticar a exploração trabalhista, enquanto o beat acelerado e o baixo pulsante dão o tom de revolta. Já em “Estamos Te Vendo”, a atmosfera é mais sombria, com um piano melancólico e uma batida que parece ecoar o ritmo de um coração acelerado. A letra, dura e direta, expõe a violência policial e a hipocrisia do sistema.

O conceito do disco vai além da música. Assaltos e Batidas vem acompanhado de um curta-metragem dirigido por Renan 1RG, que amplia a narrativa do álbum. Nele, FBC retrata a vida de dois jovens envolvidos no tráfico, questionando o ciclo de violência e mostrando como a guerra às drogas é, na verdade, uma guerra contra a população pobre. As ilustrações de Keko Animal, inspiradas no estilo de “Maus” (de Art Spiegelman), reforçam a crítica social, comparando o genocídio negro ao Holocausto. É uma obra multimídia, onde som, imagem e palavra se complementam.

Crítica | Sem nostalgia barata, FBC resgata o rap político em 'Assaltos e Batidas'
Ilustração: Keko Animal

O que mais impressiona em Assaltos e Batidas é a versatilidade de FBC. Depois de um hit como Se Tá Solteira, seria fácil continuar no funk melody, mas ele preferiu desafiar o público. Em “Qual o Som da Sua Arma?”, assume a persona de um traficante, expondo a brutalidade do crime organizado. Já em “Cosmologia Corporativista do Senhor Arthur Jansen”, fecha o disco com uma sátira ao capitalismo, usando samples de filmes e um tom quase teatral. Essa ousadia mostra um artista que não tem medo de arriscar – e que, mesmo voltando às origens, não fica preso ao passado.

Há uma intimidade rara entre FBC e sua música. Ele não apenas domina técnicas de flow e produção, mas também sabe como usá-las para contar histórias. Em “Me Diga Quem Ganha”, por exemplo, ele aborda a feminização da pobreza (“são mulheres solteiras que sustentam a casa”) e a guerra às drogas com uma naturalidade que só quem viveu ou estudou profundamente o tema consegue transmitir. Suas rimas são diretas, mas nunca simplórias. Ele consegue falar de conceitos complexos – como a mais-valia ou a alienação – sem soar didático ou forçado. Tudo isso embalado por uma linguagem pop e com refrões que ficam na cabeça.

Assaltos e Batidas também prova que FBC não está interessado em seguir modismos. Enquanto muitos rappers, após atingirem o mainstream, abraçam um discurso mais individualista ou até conformista, ele faz o oposto: radicaliza. O álbum é um convite à revolta, mas também à reflexão. Em “Quem Sabe Onde Está Jimmy Hoffa?”, ele compara a luta sindical dos anos 1970 com a precarização do trabalho hoje, mostrando como as estruturas de opressão se repetem. A batida pesada e o sample de Rede de Intrigas (1976), de Sidney Lumet, dão um tom quase cinematográfico à faixa, como se FBC estivesse montando um quebra-cabeça histórico.

E é essa maturidade que faz de Assaltos e Batidas um disco tão especial. FBC não está apenas fazendo rap – ele está construindo um legado. Se em Baile ele celebrava a cultura da favela, e em O Amor, o Perdão e a Tecnologia Irão Nos Levar Para Outro Planeta explorava o experimentalismo, aqui ele volta ao hip-hop raiz sem perder a identidade. O álbum é político, mas também é musicalmente diverso. Tem o peso do boombap, a crueza do rap de protesto e a inventividade de um artista que nunca se repete.

Assaltos e Batidas não é só sobre o passado ou o presente – é, principalmente, sobre o futuro. FBC não quer ser apenas mais um nome no rap nacional; ele quer ser a voz que falta. E, pelo visto, está conseguindo.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.