Todo brasileiro, tenha ele vivido ou não a era de Ayrton Senna nas pistas, foi impactado de alguma forma por seu legado, que atravessa gerações até os dias atuais e recebeu um novo capítulo com o recente lançamento da minissérie Senna, da Netflix, disponibilizada pela plataforma de streamings aos seus assinantes na última sexta-feira (29).
Dirigida por Vicente Amorim (A Princesa da Yakuza) e Julia Rezende (A Porta ao Lado), a obra traz não só o lendário piloto de forma fiel em detalhes, como também diversos personagens reais eternizados no imaginário do Brasil e do automobilismo mundial, com potencial para bater em cheio na nostalgia e emocionar.
O legado de Senna é respeitado
Como fã de Fórmula 1 e de Ayrton Senna, sempre imaginei o quanto a vida e a carreira do piloto brasileiro daria uma excelente obra audiovisual. Ao ficar sabendo da produção da minissérie, junto da empolgação fui tomado pela preocupação do legado de uma das maiores personalidades da cultura brasileira ser desrespeitada de alguma forma.
No entanto, minha preocupação caiu por terra logo após o fim do primeiro episódio, quando foi possível constatar que de fato a Netflix acertou no tom da homenagem, sabendo mesclar a realidade dos fatos com a ficção, necessária para a obra peencher lacunas e prender não apenas os fãs de Ayrton Senna e do automobilismo, como também qualquer telespectador.
Elenco e caracterização são impecáveis
Parte do legado apresentado na série está encarnado em Gabriel Leone (Dom), ator responsável pelo protagonista. Nascido em 1993, quase um ano antes da morte de Senna, o ator soube entregar um Ayrton tão fiel que parece ter convivido com o mesmo.
Apesar do protagonista não ser o mais próximo da realidade fisicamente, isto é facilmente contornado por sua excelente atuação e a caracterização perfeita. Aliás, esse é um dos pontos mais altos da série, com personagens tão próximos da realidade que assustam, desde suas roupas às vozes e traços de personalidade.
Destaque também para as atuações do francês Matt Mella (A Última Carta de Amor) como o piloto Alain Prost e os brasileiros Pâmela Tomé (Malhação) como Xuxa Meneghel e Gabriel Louchard (Homens?) como Galvão Bueno, narrador e amigo pessoal do protagonista.
O Brasil e seus personagens
Além de Xuxa e Galvão, outros grandes personagens brasileiros foram representados na série como os pilotos Nelson Piquet e Rubens Barrichello e a apresentadora e atriz brasileira Adriane Galisteu.
O clima brasileiro, porém, vai muito além desses personagens e a presença de Ayrton Senna. Isso porque, mesmo que o protagonista tenha passado grande parte de sua vida no exterior, a minissérie ambienta com maestria o Brasil dos anos 60, 80 e 90, com cenários e veículos que transportam o público para a época.
Além disso, as cenas dos brasileiros torcendo pelo piloto, tanto pela TV quanto no Autódromo de Interlagos, são de arrepiar. Durante sua carreira, Ayrton Senna representou para o público brasileiro um dos poucos orgulhos nacionais, devido ao difícil contexto político e social da época, além do fato da Seleção Brasileira de futebol estar passando por um longo jejum na época.
Ou seja, era muito comum que os brasileiros passassem os domingos e muitas vezes até madrugadas acordados em frente à TV para torcer por Senna na Fórmula 1. Todo esse contexto é demonstrado de forma natural e emocionante na obra, dando destaque até mesmo a personagens fictícios que carregam a essência do povo brasileiro.
O imaginário popular sobre Senna e Xuxa ganha vida
Um dos cenários retratados pela série com fidelidade foi o set do programa “Xou da Xuxa”, mais especificamente o especial de Natal de 1988, onde um dos momentos mais populares do piloto fora das pistas ocorre, ao lado de Xuxa Meneghel.
Ayrton Senna e a apresentadora viveram o relacionamento mais badalado do fim da década de 80, que durou cerca de 1 ano e 7 meses. Era forte o interesse público no casal, quando não haviam redes sociais para acompanhar a vida dos famosos.
Assim, a obra da Netflix realiza o imaginário do povo brasileiro. Pamelá Tomé tem quase 16 minutos de tela como Xuxa, muito bem aproveitados pelo enredo, onde vivenciamos um romance bem desenvolvido, com direito a cenas quentes envolvendo duas das maiores personalidades da cultura brasileira.
Antes de Xuxa, inclusive, Ayrton foi casado com Lílian, interpretada por Alice Wegmann (Ligações Perigosas), que possui um papel de extrema importância nos primeiros episódios. Tal informação sobre a vida pessoal do piloto deve pegar grande parte do público de surpresa, visto que o relacionamento desenvolveu-se antes da fama.
A relação de Senna com o automobilismo e a mídia
Quem era Ayrton Senna em sua intimidade? Essa questão também ganha vida em cenas marcantes, principalmente envolvendo o automobilismo, como seus passeios pelos autódromos, quando decorava cada curva dos traçados e toda a tensão vivida pelo mesmo antes do trágico Grande Prêmio de Ímola, que levou à sua morte em 1 de maio de 1994.
Além disso, toda a trajetória do piloto no automobilismo é bem dissolvida no decorrer dois seis episódios, desde seu início no kart, ainda criança. Outro ponto bem explorado pela trama foram as antológicas entrevistas de Ayrton, marcado por não ter medo de expor suas opiniões além das pistas e de até mesmo criticar a FIA (Federação Internacional de Automobilismo), algo raro e delicado de ser feito até mesmo nos dias atuais.
Para que essa relação com a mídia fosse apresentada de forma mais cinematográfica, foi criada a personagem fictícia Laura Harrison, vivida pela atriz britânica Kaya Scodelario (Maze Runner: Correr ou Morrer). Laura representa bem os jornalistas da época, acompanhando toda a carreira de Ayrton Senna quase que de forma romântica – não no sentido amoroso-, alternando entre as críticas ao seu temperamento a elogios ao seu exímio talento nas pistas.
O fantástico mundo da Fórmula 1
Vale destacar que os fãs de automobilismo, principalmente da Fórmula 1, serão saciados pelo trabalho da Netflix. Apesar da falta de alguns elementos com mais frequência, como os pit stops, a categoria é muito bem ambientada dentre os anos 80 e 90.
Os circuitos e os carros da época, como os lendários McLaren MP4/4, o Lotus 97T e o Williams FW16, são uma atração à parte na obra. As cenas de corrida, inclusive, são de encher os olhos de qualquer fã de velocidade, trazendo algo que a comunidade esperava ver apenas no filme oficial da F1, que estreará apenas em 2025 e deve ter de lidar com comparações com a minissérie da Netflix neste quesito.
Além disso, diversas personalidades do meio automobilístico fazem parte da trama em diversos níveis de importância, como os pilotos Niki Lauda, James Hunt, Damon Hill e Roland Ratzenberger, os chefes de equipe Peter Warr e Ron Dennis, além do lendário médico Sid Watkins.
Mas o que há de errado na minissérie da Netflix?
Apesar de todas as suas qualidades, Senna traz defeitos como qualquer obra. Mesmo com seis episódios para desenvolver a vida do piloto brasileiro, alguns elementos foram apresentados e desenvolvidos muito rapidamente, o que torna-se compreensível com tanto material a ser adaptado sobre a história do lendário piloto.
Além disso, alguns momentos históricos de Ayrton na Fórmula 1 foram deixados de lado pela produção da obra, mesmo que tenham sido mencionados indiretamente, como a “carona” que o brasileiro pegou no lado externo do carro de Nigel Mansell, após o GP de Silverstone de 1991, e quando Senna abandonou seu carro para salvar a vida do também piloto Erik Comas, após um acidente no Grande Prêmio da Bélgica de 1992.
A relação de Ayrton Senna com Monte Carlo também foi pouco explorada pela minissérie. Apelidado como “Rei de Mônaco”, ele venceu a emblemática prova por cinco vezes consecutivas entre 1989 e 1993, além de alimentar uma forte obsessão pela pista após a memorável segunda colocação em 1984 e um acidente em 1988, momentos que foram adaptados pela obra sem esse importante contexto.
A aparição de Mônaco na minissérie, porém, não se restringe a esses dois momentos, visto que eventos fora da pista do principado foram marcantes na minissérie, como uma festa de gala com todos os pilotos do grid e um suposto affair de Ayrton Senna.
Por fim, vale destacar também a rasa representação do romance de Ayrton com Adriane Galisteu, interpretada na trama por Julia Foti (“Vizinhos“), o que é justificado pela interferência da família Senna na produção, visto que não parece existir uma boa relação com a apresentadora.
Uma das maiores obras audiovisuais brasileiras da atualidade
Cravo sem medo que Senna trata-se de uma das maiores e melhores produções audiovisuais brasileiras produzidas nos últimos anos. Isso, claro, só foi possível graças ao forte investimento financeiro da Netflix, que fez com que a obra não fosse “100% brasileira”, algo necessário até mesmo para representar de forma realista a rica cultura mundial do automobilismo.
No entanto, todo o sentimento brasileiro está presente em cada minuto da minissérie, sendo um retrato impecável de tudo o que representou Senna não só para o Brasil como para o mundo. Enfim as telas conseguiram homenagear o lendário brasileiro de forma fiel, sem macular sua importante e emocionante memória.
Ayrton Senna da Silva foi muito mais que um piloto, foi um verdadeiro herói, que deu sua vida nas pistas enquanto representava todo o povo brasileiro. Povo este que sentiu sua morte em um luto público nunca antes visto, mas mantém vivo seu legado para a eternidade dentro e fora das pistas.
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