Remontando a história de um roubo de joias de trás para frente, o clima entre as personagens já começa caótico com um plano inicial que retrata a fuga dos ladrões durante um sequestro não planejado para a área deserta de Serra das Almas, no interior de Pernambuco.
Reunidos em uma casa no meio do nada, cada personagem é assombrado pelo próprio passado, resultando em uma sequência de catástrofes inusitadas que vão se agravando. Nesse sentido, o filme se assemelha a um thriller psicológico com toques de comédia em um estilo à la Tarantino de humor negro.
As raízes profundas da cultura norte-americana em nossa cultura tornam-se visíveis no comportamento e aspiração do personagem de Ravel Andrade de se tornar um congressista norte-americano. É este sonho que o faz se envolver em um esquema de corrupção e garimpo ilegal, em que torna-se capanga do senador investigado por uma jornalista e sua estagiária, interpretadas por Julia Stockler e Pally Siqueira, respectivamente.
Em um monólogo que mostra a profundidade do personagem e as camadas na atuação de Andrade, ele pede para ser gravado e contar sua história, tomando controle da sua narrativa e realizando o sonho de sair do anonimato e tornar-se “alguém”.
Apresentado inicialmente como o mais são entre os dois irmãos e parceiros no crime, ao fim do filme revela-se que ele era o mais perigoso e sangue-frio entre os dois, ao matar o próprio irmão e assediar a esposa de seu melhor amigo. Abandonados à própria sorte pelos pais no agreste pernambucano, os dois personagens reproduzem a violência que foram ensinados pela mídia e política brasileira, buscando liberdade através do dinheiro e corrupção.
Diante desse cenário, Ferreira faz uma crítica ao individualismo capitalista e seu impacto nas populações mais vulneráveis do Brasil, gerando um ciclo de violência que reforça o comportamento imoral. Na reportagem da televisão, o ex-chef do tráfico, vivido por Vertin Moura, é culpado pelo próprio sequestro devido a seu passado criminal, e volta aos velhos hábitos ao presenciar mais assassinatos e opressão, se é que algum dia de fato deixou o crime para trás.
Durante seu tempo juntas em cativeiro, a tensão entre as jornalistas é palpável quando a repórter é revelada ser amante do pai da estagiária, o dono da rede de televisão para que trabalha, e ao ser confrontada pela jovem revela não ter remorso, justificando-se por trilhar o caminho mais fácil para conquistar sua liberdade como mulher na profissão.
A esposa do amigo dos ladrões e dono da casa, retratada por Mari Oliveira, faz vista grossa para as ações dos amigos do marido, mas eventualmente ajuda as reféns com comida e medicamentos, incentivando-as a ficar de boca calada, como mulher que teve que aprender a ficar quieta para se proteger em um ambiente hostil. Essa reação é até compreensível, visto que a ex-cantora perdeu parte de sua audição com um tiro de raspão na orelha ao se defender do abuso que sofreu.
Ao final do filme, as três mulheres conseguem fugir do ambiente em que estavam reféns e se libertar de Serra das Almas, espécie de purgatório que leva seus habitantes ao limite para fugir de suas próprias “assombrações”.
Nessa perspectiva, a obra pinta um retrato interessante das justificativas por trás das hipocrisias e tragédias prevalentes no Brasil, mas falha em profundidade na sua crítica, assim como outros filmes de ação políticos como “Bacurau”, cai na armadilha da espetacularização na violência que mais entrete o público do que induz alguma reflexão substancial sobre a cultura do país.
Assim, é de fato nos momentos humorísticos que roteiro, direção e elenco brilham, como na cena em que os bandidos assistem um desenho sobre fadas na televisão, ou discutem as origens do amigo paulista que na verdade é do Paraná.
Pernambuco é um estado muito rico; as paisagens intocadas e deslumbrantes da região de Serra das Almas engrandecem a arte e a fotografia, apresentando um grande contraste ao som, essencial para criar a atmosfera de apreensão e suspense do filme.
Entretanto, as duas horas de duração são cansativas e as escolhas de montagem não me permitiram uma total imersão no enredo, de forma que a concentração da maioria das cenas de ação no terceiro ato me fizeram perder interesse na história e destino dos personagens.
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