A morte está aí, te observando de perto, e o que é que você vai fazer? Fugir dela ou, quem sabe, rir dela um pouco? Sonhar com Leões não tem medo de enfrentar essa pergunta. Aliás, o filme parece quase convidar o espectador a rir na cara da morte, como quem dá o dedo do meio para um destino inevitável. E é isso que torna esse filme algo raro – ele não tem vergonha do tema que geralmente nos faz olhar para os cantos e desviar do olhar da câmera: a morte. De uma forma tão tranquila quanto amarga, o diretor português João Nuno Pinto nos traz um olhar cru sobre a eutanásia, sem recorrer ao drama exagerado ou ao sentimentalismo barato que costumam marcar filmes que abordam esse assunto.
O ponto de partida para essa reflexão, que se desenrola ao longo da narrativa, é a relação entre dois personagens marcados pela dor, mas também pela clareza de suas decisões. João, interpretado por João Nunes Monteiro, e Clara, vivida pela brasileira Denise Fraga, formam uma dupla que carrega a carga emocional necessária para conduzir essa trama densa, mas que nunca se deixa consumir por um tom excessivamente dramático. As atuações são um dos maiores trunfos de Sonhar com Leões, com os dois protagonistas construindo personagens de forma sutil, sem a necessidade de exageros, algo que enriquece a proposta do filme. Monteiro e Fraga trazem leveza para um tema tão pesado, estabelecendo uma química inesperada, onde os olhares e os gestos dizem mais do que longos diálogos.

O filme se movimenta entre o drama e o surrealismo, e essa transição é conduzida com maestria. A forma como o diretor trabalha com os elementos oníricos, usando a repetição da frase “sem pena”, traz uma sensação de distanciamento da realidade, mas ao mesmo tempo aproxima o espectador do núcleo mais íntimo dos personagens. Há uma crítica implícita a uma sociedade que, muitas vezes, prefere varrer as questões incômodas, como a morte, para debaixo do tapete. Mas o filme se recusa a fazer isso, e em momentos como esses, ao se lançar no surrealismo, ele sugere um certo absurdo que desestabiliza o espectador, ao mesmo tempo que o coloca diante de uma reflexão complexa.
É nessa mistura de realidade e delírio que Sonhar com Leões se faz diferente. Se por um lado há cenas mais expositivas, com diálogos que servem como uma espécie de discurso sobre a vida e a morte, essas não soam como meras falas informativas. Elas são parte de um jogo mais amplo, no qual o filme constrói sua argumentação sem a necessidade de dramaticidade forçada, algo que é uma raridade quando o assunto em questão é tão complexo e sensível. A escolha de não recorrer ao melodrama ajuda a tornar o filme mais humano e autêntico, evitando o velho truque de fazer o público chorar a todo custo.
Na montagem, o filme segue um ritmo tranquilo, sem pressa de concluir sua narrativa. Essa cadência ajuda a criar uma atmosfera introspectiva, quase como se o espectador estivesse sendo convidado a contemplar a morte de maneira não apressada, mas sim com a serenidade de quem já aceitou a inevitabilidade dela. A fotografia, sem ser excessivamente estilizada, contribui para essa sensação de calmaria. Os planos são simples, sem grandes ousadias ou experimentações visuais, mas ainda assim muito eficazes. Há uma ênfase na luz suave, muitas vezes artificial, que nos remete ao clima de desolação e de reflexões existenciais, como se o próprio ambiente estivesse impregnado de uma nostalgia silenciosa.
A quebra da quarta parede, que é utilizada de maneira esporádica, também é um dos pontos mais interessantes do filme. Em especial, quando Clara e João se dirigem diretamente ao público, trazendo uma perspectiva pessoal e quase íntima sobre a dor e o sofrimento. Essa estratégia não só aproxima os personagens do espectador, mas também lhes confere uma humanidade palpável, como se estivéssemos assistindo a um pensamento íntimo sendo compartilhado com a câmera. A inserção dessa técnica de forma natural e sem grandes alardes é uma prova do controle da direção sobre o tom e ritmo do filme.
Sonhar com Leões nos oferece uma visão desconcertante, mas também madura e realista, sobre um tema tão complexo como a eutanásia. Ele não nos pede para concordar com as decisões dos personagens, mas sim para refletir sobre elas, questionando o que é realmente humano e digno em uma sociedade que muitas vezes vê a morte como um tabu. Por mais que o filme siga um caminho mais contido, sem grandes cenas de ação ou desfechos arrebatadores, ele se sustenta pela profundidade de sua mensagem e pela honestidade com que aborda o sofrimento humano. O humor sombrio, presente em alguns momentos, ajuda a quebrar a tensão, sem perder a linha de seriedade do assunto.
A direção comedida de Nuno, sem excessos, permite que o filme respire e se desenvolva de maneira orgânica, sem apelar para os melodramas que poderiam facilmente afundar o roteiro. O equilíbrio entre o drama e o surrealismo é, sem dúvida, um dos maiores acertos da obra.

A edição, fluida, evita cortes abruptos, permitindo que os momentos de silêncio ou introspecção ganhem sua devida importância. Ao mesmo tempo, o uso da repetição, especialmente da frase “sem pena”, acaba se tornando um mantra que ecoa na mente do espectador, criando uma atmosfera quase hipnótica.
Fui pego de surpresa por Sonhar com Leões, uma experiência que vai além do simples cinema. Ele é o tipo de filme nos faz questionar como lidamos com os temas mais espinhosos, oferecendo uma visão poética e humana sobre a morte. Nos dando a sensação de que, por mais difícil que seja, a morte pode ser, em algumas circunstâncias, a solução mais humana.
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