Crítica | Sugarcane: a desesperança que ecoa por gerações em um documentário arrastado
National Geographic/Divulgação

Crítica | Sugarcane: a desesperança que ecoa por gerações em um documentário arrastado

Sugarcane é um daqueles filmes que não se contenta em apenas contar uma história; ele busca rasgar as entranhas da história para expor feridas que muitos prefeririam deixar cicatrizadas no silêncio. O documentário, dirigido pela dupla Emily Kassie e Julian Brave NoiseCat, com sensibilidade, mas nem sempre com precisão, mergulha em um dos capítulos mais sombrios da colonização moderna: o assassinato sistemático, os abusos sexuais e a violência física cometidos pela Igreja Católica contra crianças indígenas em escolas residenciais. A espinha dorsal do filme é uma investigação que tenta localizar uma vala comum, um esforço para reunir provas que não apenas reconstruam esse período histórico, mas que também responsabilizem os culpados e, quem sabe, tragam alguma forma de reparação. No entanto, o filme vai além da mera investigação forense. Ele se propõe a ser um retrato da sobrevivência — da cultura, dos indivíduos e das memórias que teimam em persistir, mesmo quando tudo ao redor parece conspirar para apagá-las.

O tema é urgente e necessário. A violência cultural e física sofrida por gerações de indígenas não é apenas um registro histórico; é uma ferida aberta que continua a sangrar. O documentário não poupa o espectador dos detalhes mais cruéis: padres que engravidavam crianças, bebês enterrados ou incinerados pelas freiras, e uma cadeia de abusos que se repetiu por décadas, senão séculos. Essas histórias, omitidas dos livros de história, são trazidas à tona com uma compaixão que é, ao mesmo tempo, a maior força e a maior fraqueza do filme.

A compaixão é evidente na forma como o documentário trata seus entrevistados. Os sobreviventes que compartilham suas histórias são retratados com um respeito quase reverencial. Suas vozes são ouvidas sem pressa, suas pausas e silêncios são respeitados, e suas lágrimas não são exploradas como espetáculo, mas como testemunho. Essa abordagem é importante, pois humaniza vítimas que, por tanto tempo, foram tratadas como meros números em um sistema de opressão. No entanto, essa mesma compaixão parece, às vezes, sufocar o ritmo do filme. Cenas prolongadas de paisagens vazias ou de silêncios que se estendem além do necessário acabam por diluir a urgência do tema. É como se o filme, em seu esforço para não ser invasivo, acabasse se perdendo em sua própria contemplação.

E é aqui que Sugarcane revela sua maior contradição: ele tenta equilibrar três narrativas distintas — a investigação da vala comum, as memórias dos sobreviventes e os traumas geracionais — mas não consegue integrá-las de forma coesa. O resultado é um filme que parece três documentários em um, cada um competindo por atenção e profundidade. A investigação, por exemplo, é fascinante por si só, mas acaba relegada a segundo plano em favor de longas sequências que, embora visualmente belas, pouco acrescentam à narrativa principal. Já as histórias dos sobreviventes, embora poderosas, são interrompidas por cortes abruptos para cenas que parecem desconectadas do todo.

Crítica | Sugarcane: a desesperança que ecoa por gerações em um documentário arrastado
National Geographic/Divulgação

Essa falta de foco narrativo é, talvez, o maior pecado do filme. Um tema tão denso e complexo exige uma estrutura que o sustente, e Sugarcane parece hesitar em escolher um caminho. Em vez de mergulhar fundo em uma das vertentes, ele se contenta em navegar superficialmente por todas, deixando o espectador com a sensação de que algo crucial ficou faltando. É como se o filme tivesse medo de ser incisivo, preferindo uma abordagem mais contemplativa, mas que, no final das contas, acaba por diluir o impacto de sua própria mensagem.

Ainda assim, há momentos de brilho inegável. A cena final, por exemplo, é de partir o coração. Sem spoilers, é possível dizer que ela encapsula toda a dor e a desesperança que permeiam o filme. É um momento de rara força emocional, que consegue, em poucos minutos, resumir o que o restante do documentário tenta dizer em quase duas horas. É aqui que Sugarcane encontra sua voz mais autêntica, deixando de lado as digressões e focando no que realmente importa: as vidas que foram destruídas e as que ainda lutam para se reconstruir.

Outro aspecto que merece destaque é a fotografia. As paisagens são filmadas com um cuidado quase poético, criando um contraste doloroso entre a beleza natural e a brutalidade humana. Essas imagens servem como uma espécie de alegoria visual: mesmo em meio à destruição, há uma resiliência que persiste, assim como a natureza que teima em florescer mesmo em solo devastado. No entanto, como já mencionado, essa beleza visual muitas vezes serve mais para arrastar o ritmo do que para enriquecer a narrativa.

Crítica | Sugarcane: a desesperança que ecoa por gerações em um documentário arrastado
National Geographic/Divulgação

E é aqui que chegamos ao cerne da questão: Sugarcane é um documentário necessário, mas imperfeito. Sua importância histórica e social é inegável, mas sua execução deixa a desejar. A falta de foco narrativo e o ritmo lento podem afastar espectadores menos pacientes, e é uma pena, pois o tema merece toda a atenção possível. No entanto, mesmo com suas falhas, o filme cumpre um papel crucial: ele traz à tona histórias que foram silenciadas por muito tempo e dá voz àqueles que foram forçados ao silêncio.

Sugarcane nos lembra que a história não é algo que ficou para trás; ela está viva, reverberando nas vidas daqueles que sobreviveram e nas gerações que ainda carregam o peso do passado. E talvez seja esse o maior mérito do filme: ele não permite que a gente olhe para o outro lado. Ele nos força a encarar a sombra, mesmo quando a luz parece insuportável. E, nesse sentido, ele cumpre sua missão, ainda que de forma imperfeita.

Assim, enquanto os créditos rolam, ficamos com a sensação de que, apesar de todas as suas falhas, Sugarcane plantou uma semente. Cabe a nós regá-la, para que um dia, quem sabe, ela possa florescer em um futuro onde histórias como essas não precisem mais ser contadas.

Sugarcane está disponível no Disney+.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.