Kelly Reichardt nunca foi uma cineasta de grandes gestos, nem de tramas que correm em alta velocidade. Sua arte está nos silêncios, nas pausas, nos pequenos desvios da vida comum – e é justamente nesse território que The Mastermind floresce como uma de suas obras mais sutis e desconcertantes. Longe de qualquer glamour dos heist movies (filmes de assalto) tradicionais, o filme desmonta a mística do “gênio do crime” para revelar algo muito mais banal; a mediocridade travestida de ambição.
Ambientado na Nova Inglaterra dos anos 1970, o longa acompanha James (Josh O’Connor), um ex-estudante de arte e aspirante a arquiteto que se vê atolado em dívidas e dependente do prestígio social dos pais. A trama, em essência, é simples, James idealiza um roubo de obras de arte de um pequeno museu local, mas sua falta de habilidade, carisma e real compreensão do que faz o coloca em um redemoinho de fracassos. O título, The Mastermind (O Mentor), é uma ironia – e talvez a chave de leitura para o que Reichardt propõe aqui: uma sátira amarga sobre a masculinidade tola e autossuficiente, sobre o delírio do homem comum que acredita poder burlar o sistema apenas pela força da própria vontade.
A diretora, fiel à sua estética da observação, filma tudo com a paciência de quem prefere acompanhar o colapso em silêncio. Não há trilha sonora grandiosa, nem cortes acelerados. O roubo em si, que em outros filmes seria o clímax, é apenas um fragmento entre muitos. O que interessa é o depois – a ressaca moral, a desordem do cotidiano após o suposto “golpe”. Reichardt transforma o caos do crime em um estudo de caráter, e o suspense em pura contemplação.
Essa abordagem encontra um parceiro perfeito na fotografia de Christopher Blauvelt, colaborador habitual da diretora. O trabalho de luz e cor é notável pela discrição; tons pastéis, textura granulada e uma luminosidade leitosa que sugere dias nublados e frios. Há uma melancolia difusa que atravessa cada plano, como se o tempo estivesse suspenso. A opção por evitar luzes diretas nos rostos e privilegiar ambientes com iluminação natural contribui para essa sensação de isolamento. Cada espaço – cozinhas, corredores, estacionamentos – parece preso num limbo temporal, um eco do desânimo social que marcava os Estados Unidos pós-Vietnã.

Reichardt não tenta “recriar” os anos 1970 com fetichismo. Ao contrário, sua reconstituição é quase invisível, feita de detalhes sutis: o tipo de tecido das roupas, a textura das paredes, o som de um telefone público. Tudo é pensado para manter o espectador próximo da realidade, e distante de qualquer nostalgia. Essa escolha é decisiva para o tom do filme. The Mastermind não é uma fantasia de época, e sim uma observação fria de um momento histórico em que os ideais de sucesso e virilidade começavam a ruir.
Josh O’Connor, por sua vez, entrega uma atuação notavelmente contida. Seu James é um homem sem eixo, que tenta agir com confiança, mas cuja fragilidade é perceptível em cada gesto. O ator carrega no olhar uma mistura de culpa e vazio que torna o personagem trágico e ridículo ao mesmo tempo. Em certos momentos, lembra o papel que interpretou em “La Chimera“, de Alice Rohrwacher – outro ladrão de arte, embora mais consciente e determinado. Aqui, porém, O’Connor encarna o oposto, um sujeito patético, perdido em sua própria ingenuidade, que acredita ser um protagonista de filme noir quando, na verdade, mal entende o enredo em que está inserido.
Essa representação destoa fortemente da tradição dos filmes de assalto, historicamente dominada por olhares masculinos que romantizam o fracasso dos anti-heróis. De “Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Balas” a “Fogo contra Fogo”, há uma tendência em transformar criminosos desastrados em figuras fascinantes, movidas por um senso distorcido de liberdade. Reichardt recusa essa fantasia. Sua câmera não adora James – ela o observa, o questiona, o desmonta. Ele não é uma vítima da sociedade, tampouco um rebelde incompreendido. É apenas um homem comum, branco e mimado, que confunde privilégio com esperteza.
Essa desconstrução do arquétipo masculino é um dos aspectos mais brilhantes do filme. Reichardt filma a solidão de James com empatia, mas sem complacência. Há ternura em sua mise-en-scène – principalmente nas cenas em que o protagonista procura abrigo entre conhecidos, como na tocante conversa com Maude (Gaby Hoffman), uma antiga amiga que o acolhe por compaixão, mas também o expulsa por exaustão. A sequência é exemplar do cinema de Reichardt: gestos pequenos, olhares interrompidos e um ritmo que traduz o embaraço das relações humanas. Ninguém grita, ninguém se explica demais. Tudo é dito no silêncio entre as frases.
A montagem reforça esse tom de desajuste. O filme alterna longos planos fixos com cortes abruptos que parecem negar qualquer sensação de continuidade. Há uma recusa deliberada em oferecer o que o público espera de um heist movie: o plano perfeito, a adrenalina, a catarse. Em vez disso, Reichardt nos entrega a lentidão do fracasso. Vemos James vagando de motel em motel, telefonando para casa, tentando manter um verniz de normalidade. A cada ligação, sua mediocridade se revela um pouco mais – e a distância emocional entre ele e a esposa (Alana Haim, subutilizada) se torna irrecuperável.
Mesmo os aspectos morais da história são deixados à margem. Não há juízes, advogados ou discursos sobre culpa. A diretora prefere se deter nas consequências íntimas do crime, no modo como a vergonha corrói o protagonista de dentro para fora. Nesse sentido, The Mastermind funciona quase como um contraponto a “Showing Up”, seu filme anterior. Lá, Reichardt examinava o cotidiano de uma artista que enfrentava as pequenas angústias da criação; aqui, investiga o desespero de alguém que nunca soube criar nada – nem arte, nem amor, nem rumo.

O resultado é um filme de aparente simplicidade, mas de profunda complexidade emocional. A cada plano, há uma precisão formal que revela o domínio de Reichardt sobre o ritmo e a textura da imagem. Sua direção nunca busca impor emoção, e sim permitir que ela emerja aos poucos, como uma mancha na parede que se torna perceptível apenas quando a luz muda.
The Mastermind é, portanto, uma ironia perfeita. A “mente brilhante” do título é, na verdade, um vazio – um retrato cruel e melancólico da autoconfiança masculina desmontada por dentro. Kelly Reichardt reafirma, com delicadeza e rigor, que o verdadeiro gesto de subversão no cinema contemporâneo não é roubar uma pintura, mas olhar de frente a mediocridade humana e transformá-la em arte.
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