A perversidade nos contos de fadas originais dos Irmãos Grimm que as adaptações Disney suavizaram ao longo dos anos, é resgatada em Meia-Irmã Feia. A estreia da norueguesa Emilie Blichfeldt, na direção chega regado a sangue, mutilações e vinganças cruéis. O filme não é apenas uma reimaginação de “Cinderela” – mas uma fábula sobre como a obsessão pela beleza pode corroer até mesmo os laços mais íntimos.
A trama gira em torno de Elvira (Lea Myren), uma jovem desajeitada e cheia de inseguranças, cuja mãe, Rebekka (Ane Dahl Torp), a submete a procedimentos brutais para transformá-la em uma candidata “digna” ao coração do Príncipe Julian (Isac Calmroth).
Enquanto sua meia-irmã, Agnes (Thea Sofie Loch Naess), personifica a graça natural, Elvira é esmagada por padrões inatingíveis em um processo que mistura dor física e humilhação. O roteiro, embora simples na estrutura, ganha profundidade pela forma como a estética do horror é explorada para falar de algo muito real: a violência dos ideais de beleza.
Marcel Zyskind, diretor de fotografia, é um dos grandes responsáveis pelo clima opressivo do filme. Seu trabalho alterna entre dois universos: o dos sonhos de Elvira, banhados em luz dourada e neblima, e a realidade crua, filmada com cores soturnas e contrastes marcados pela rigidez das sombras.
As cenas de “transformação” – cirurgias caseiras, extrações dentárias, a inserção de uma tênia para emagrecimento – são capturadas em closes tão invasivos que o espectador quase sente o odor de sangue e pus. A escolha não é gratuita. Ao ampliar cada detalhe repugnante, a câmera força o público a encarar o que normalmente é escondido: o preço físico e emocional de se moldar aos padrões alheios.

Os cenários, inspirados em pinturas góticas do século XIX, reforçam a dualidade entre beleza e horror. Os vestidos de cetim, desenhados por Manon Rasmussen, são deslumbrantes, mas parecem mais como armadilhas que como trajes de festa. As saias rodadas e os corpetes apertados, embora historicamente precisos, são filmados de forma a destacar seu caráter constritivo. Não há glamour, apenas a sensação de que cada fio de tecido é mais uma corrente.
O horror corporal em Meia-Irmã Feia não é apenas visual – é narrativo. Cada procedimento a que Elvira se submete é uma metáfora das exigências que as mulheres enfrentam diariamente. A cena em que a protagonista tem seus aparelhos dentários com um alicate, por exemplo, é filmada como um ritual de tortura, com a câmera tremendo e os sons amplificados para gerar desconforto. A tênia que Elvira engole para emagrecer se torna uma presença quase demoníaca, com ruídos guturais que ecoam em momentos inesperados.

Lea Myren entrega uma performance visceral, transitando entre a ingenuidade e a loucura. Seus olhos sempre brilham com esperança, mesmo quando seu corpo está em frangalhos. Essa dissonância – entre o que ela sente e o que lhe é imposto – é o cerne do filme. Enquanto isso, Ane Dahl Torp, como a mãe manipuladora, é a personificação de uma sociedade que prega o sacrifício feminino como virtude. Seu amor é condicional: só existe se Elvira se encaixar no molde.
Um dos pontos mais debatidos – pelo menos entre outros colegas que o assistiram – do filme é sua estrutura repetitiva. O segundo ato mostra Elvira passando por uma série de transformações dolorosas, sem que haja uma evolução clara em sua jornada.
Alguns podem ver isso como uma falha narrativa, mas há uma intenção por trás: a repetição é um espelho da própria obsessão. Elvira não avança porque está presa num ciclo de autoflagelação, assim como muitas mulheres que internalizam a ideia de que nunca são boas o suficiente.
A trilha sonora, que mistura composições barrocas com batidas eletrônicas discretas, reforça essa ideia de temporalidade distorcida – algo parecido com a abordagem de Sofia Coppola em “Maria Antonieta”. Os padrões de beleza mudam, mas a pressão permanece. Em uma cena particularmente impactante, o príncipe – figura quase irrelevante, apesar de ser o prêmio em disputa – diz a Elvira que nunca se deitaria com “algo como ela”. A fala é rápida, mas suficiente para mostrar que, no fim, nem mesmo a perfeição garante amor verdadeiro.
O desfecho de The Ugly Stepsister é tão perturbador quanto inevitável. Blichfeldt não oferece redenção ou moral da história – apenas a consequência lógica de um mundo que valoriza cascas vazias. A última cena, filmada em um plano aberto que contrasta com os closes claustrofóbicos do resto do filme, parece perguntar: “E agora? O que sobra quando a beleza não é mais suficiente?”

Meia-Irmã Feia não é fácil. Seus momentos mais extremos podem afastar espectadores sensíveis, mas sua ousadia técnica e, sobretudo, temática, merecem reconhecimento. Blichfeldt quer cutucar a ferida. Ao fazer isso, a diretora cria uma obra que, assim como os contos dos Grimm, usa o grotesco para falar de verdades da sociedade contemporânea. No final, parece que não mudamos tanto assim depois centenas de anos.
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