Em um mundo onde a história é frequentemente contada pelos vencedores, o documentário Trilha Sonora para um Golpe de Estado surge como uma obra que desafia narrativas hegemônicas, utilizando o jazz como arma e metáfora sonora para a luta anti-colonial. A música, com sua capacidade de improvisação e liberdade, torna-se o fio condutor de uma história e dolorosa: a descolonização do Congo e o assassinato de Patrice Lumumba. A obra não é apenas um relato histórico, mas uma experiência cinematográfica que se assemelha a uma jam session, onde a montagem é a levada que guia o espectador por um turbilhão de informações, imagens e sons.
O filme começa com uma introdução que já estabelece seu tom: não há espaço para didatismo simplista. A narrativa é construída como uma colagem, onde imagens de arquivo, intertítulos e trechos de músicas se entrelaçam para criar um mosaico de significados. A técnica de montagem é, sem dúvida, o grande trunfo do documentário. O diretor, Johan Grimonprez, opta por uma abordagem não linear, quebrando a cronologia tradicional e permitindo que os eventos históricos se sobreponham, como se fossem acordes dissonantes em uma composição de Miles Davis. Essa escolha estilística convida o espectador a se engajar ativamente na construção do sentido.
A montagem acelerada, com cortes rápidos e justaposições inesperadas, lembra a técnica do jazz fusion, onde diferentes estilos musicais se fundem em uma única peça. No filme, vemos cenas de discursos políticos intercaladas com performances de jazz, imagens de conflitos armados mescladas a propagandas modernas de smartphones. Essa técnica cria um efeito de estranhamento, forçando o espectador a refletir sobre as conexões entre o passado colonial e o presente neocolonial. A edição, portanto, não é apenas um recurso estético, mas uma ferramenta política, que expõe as continuidades entre a exploração do Congo no século XX e a extração de minerais raros para a produção de tecnologia no século XXI.
O jazz, por sua vez é um personagem central na narrativa. Músicos como Louis Armstrong, Dizzy Gillespie e Nina Simone são apresentados não apenas como artistas, mas como agentes políticos que, conscientemente ou não, participaram da luta anti-colonial. O filme explora como a música foi utilizado como soft power pelos Estados Unidos (EUA) durante a Guerra Fria, ao mesmo tempo em que serviu como voz de resistência para os movimentos de libertação africanos. A música preta, com suas raízes na diáspora africana, torna-se um símbolo de solidariedade transnacional, conectando as lutas dos negros nos EUA com as dos povos colonizados na África.
No entanto, o documentário não idealiza o jazz como uma força unificadora. Ele também mostra as contradições e ambiguidades dessa relação. Louis Armstrong, por exemplo, é retratado como uma figura complexa: por um lado, ele se preocupa em ser instrumentalizado pelo Departamento de Estado; por outro, sua música é celebrada como um símbolo de liberdade. Essa dualidade é explorada de forma sutil, sem julgamentos fáceis, permitindo que o espectador reflita sobre as nuances da participação artística na política.
A escolha de não utilizar narração em off é outro aspecto que merece destaque. Em vez de uma voz onisciente que guia o espectador, o filme recorre a intertítulos que citam fontes históricas, literárias e jornalísticas. Essa técnica reforça a sensação de que estamos diante de um ensaio visual, onde a história é contada através de fragmentos que o espectador deve conectar. A ausência de uma voz narrativa central também evoca a natureza coletiva do jazz, onde cada instrumento tem seu papel, mas nenhum domina completamente a composição.
Apesar de suas qualidades, o documentário não está isento de críticas. A duração, com cerca de 2h30 pode ser exaustiva para alguns espectadores, especialmente aqueles que não estão familiarizados com o tema. A montagem frenética, embora brilhante, pode alienar quem busca uma narrativa mais linear e didática. Além disso, o filme assume que o público já possui um conhecimento prévio sobre a história do Congo e de Patrice Lumumba, o que pode limitar seu alcance. Para aqueles que não estão familiarizados com o assunto, a experiência pode ser mais confusa do que esclarecedora.
No entanto, essas críticas não diminuem a importância do documentário. Pelo contrário, elas destacam sua ambição e complexidade. Trilha Sonora para um Golpe de Estado não é um filme fácil e Grimonprez optou por isso. Ele nos lembra que a luta anti-colonial não é um capítulo fechado da história, mas um processo contínuo, que ressoa nas lutas atuais por justiça social e igualdade. O jazz, com sua capacidade de improvisação e reinvenção, serve como um lembrete poderoso de que a resistência pode assumir muitas formas, desde um solo de saxofone até uma marcha nas ruas.
O espectador é deixado com uma sensação de inquietação, mas também de esperança. Ele nos lembra que a história não é uma narrativa linear, mas uma composição em constante evolução, onde cada nota, cada acorde, cada silêncio tem seu significado. E, assim como no jazz, é na improvisação que encontramos a verdadeira liberdade.
Se o filme começa com a promessa de uma jornada musical, ele termina com a certeza de que a música, como a resistência, nunca cessa. E é nessa ressonância que encontramos o verdadeiro poder de Trilha Sonora para um Golpe de Estado: não apenas como um relato do passado, mas como um chamado para o futuro.
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