48ª Mostra | Tudo Que Imaginamos Como Luz, O Banho do Diabo
LUXBOX/Divulgação

Crítica | Tudo o que Imaginamos como Luz é sobre mulheres desafiando o destino

Tudo o que Imaginamos como Luz, primeiro longa-metragem da cineasta Payal Kapadia, chega ao público como um delicado exercício de introspecção sobre as complexidades da vida urbana, especialmente a solidão e o isolamento de mulheres na cidade de Mumbai, na Índia. Com um estilo que combina o realismo mágico com a imersão no cotidiano da cidade, o filme revela, através de um ritmo calmo e introspectivo, um universo em que as personagens, presas nas teias de suas próprias rotinas, tentam, silenciosamente, escapar e se redescobrir.

Kapadia nos apresenta três mulheres de diferentes idades e realidades, cujas vidas se entrelaçam em um cenário urbano caracterizado por seu caos e solidão. Prabha (Kani Kusruti), Anu (Divya Prabha) e Parvaty (Chhaya Kadam) se tornam não apenas personagens, mas representações das tensões sociais, familiares e emocionais que atravessam as mulheres nas grandes cidades. De maneira sensível, a cineasta traduz, em sua obra, um sentimento coletivo que muitas mulheres compartilham: o de viver em uma sociedade que as obriga a se conformar com normas rígidas, ao mesmo tempo em que as reduz ao invisível, ao silencioso, ao não dito.

Crítica | Tudo o que Imaginamos como Luz é sobre mulheres desafiando o destino
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Prabha, interpretada por Kusruti, é a personificação da mulher comum que está aprisionada em um ciclo interminável de obrigações domésticas e familiares, sem grandes aspirações, mas com um grande desejo de algo mais. Seu casamento, longe de ser uma escolha de coração, parece um fardo que ela aceita passivamente. O marido, distante, está na Alemanha, e ela vive uma existência marcada pela espera. Como muitos, ela se vê em um ponto de estagnação, sem saber como sair desse ciclo. A câmera de Kapadia nos faz enxergar Prabha em pequenos momentos de vulnerabilidade, de saudade, de desejo, muitas vezes utilizando close-ups que nos forçam a encarar a complexidade dessa mulher.

A construção visual de Tudo o que Imaginamos como Luz é uma das suas grandes qualidades. Kapadia é econômica na variação de enquadramentos, muitas vezes se afastando das personagens para criar uma sensação de distanciamento, como se nos lembrasse de que, apesar da proximidade física, a solidão ainda está presente. A luz, ou melhor, a falta dela, é um elemento recorrente na cinematografia do filme. Como se a luz fosse uma representação para as possibilidades não realizadas, para os sentimentos abafados, o filme é quase constantemente envolto por sombras, pela escuridão, por um certo clima melancólico.

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Em um dos momentos mais marcantes, vemos Prabha, em um cenário de quase total escuridão, lutando para se conectar com sua própria identidade e com o outro, o marido ausente. A luz que surge, como uma promessa de algo mais, vem de um ponto fora de campo – um detalhe técnico simples, mas profundamente simbólico. O que Kapadia nos transmite com isso é que, apesar de toda a solidão e da escuridão, sempre há uma luz, ainda que tênue, que pode nos guiar.

Esse jogo entre a escuridão e a luz é uma das alegorias centrais do filme, que busca refletir a luta interna de suas personagens, que tentam, ao longo da narrativa, encontrar um caminho, uma saída, um significado para as suas vidas. Quando Prabha se vê em uma conversa com outra mulher sobre seu marido, é nesse momento que vemos o rosto da personagem iluminado apenas parcialmente, como se fosse uma cena de revelação, um vislumbre de uma verdade não dita, mas intuída. O uso da luz como elemento narrativo é, portanto, não só estético, mas uma chave para entendermos o que está em jogo na trama: a busca da personagem pela aceitação, pelo amor e, sobretudo, pela liberdade.

A cidade de Mumbai, com seu ritmo frenético e sua energia insana, é mais do que apenas o pano de fundo. Ela atua, desse jeito caótico, como o mundo interior das protagonistas. O contraste entre os espaços apertados, as ruas chuvosas e as noites úmidas é um reflexo perfeito da claustrofobia emocional que as personagens sentem.

Não se trata apenas de uma cidade movimentada e caótica, mas de um lugar que, paradoxalmente, também faz com que seus habitantes se sintam isolados. Nesse contexto, a escolha de Kapadia em capturar a cidade em tons de azul, com uma paleta fria, reforça a sensação de que os personagens estão perdendo a batalha contra o impessoalismo urbano.

Se a cidade é uma personagem, o ritmo do filme é outro elemento essencial para compreender a proposta de Kapadia. Tudo o que Imaginamos como Luz é um filme que caminha em um ritmo deliberadamente lento, de modo que cada momento de introspecção de suas personagens se torna crucial para o entendimento de suas emoções.

A utilização da música, de forma minimalista e repetitiva, também é uma ferramenta que a diretora utiliza para intensificar essa sensação de estagnação, de um tempo que parece não avançar. As músicas compostas por Dhritiman Das e Topshe, com seus acordes suaves, é um contraste interessante com a pulsação da cidade, criando uma atmosfera em que a tranquilidade das personagens se choca com o tumulto externo.

Além disso, a construção das relações entre as personagens também é um ponto de destaque. Anu, por exemplo, é a jovem que desafia as convenções e a imposição da família, ao se apaixonar por um homem muçulmano, uma escolha ousada em um contexto indiano. Ao contrário de Prabha, que está resignada a sua existência, Anu toma as rédeas de sua vida e decide viver o amor que sente, mesmo que ele vá contra os desejos de seus pais. Essa diferença de postura é abordada de maneira muito sutil e gradual no filme, que, ao invés de dar respostas prontas, prefere nos fazer refletir sobre as escolhas e os dilemas dessas mulheres.

Crítica | Tudo o que Imaginamos como Luz é sobre mulheres desafiando o destino
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A intersecção dessas três mulheres, que compartilham suas experiências de vida, é o que, no final, dá o tom de resiliência ao filme. Elas não estão apenas buscando um sentido para suas existências, mas também tentando encontrar apoio umas nas outras, em um sistema de sororidade que emerge com o tempo.

Mumbai, com sua vastidão e complexidade, simboliza as escolhas de vida que se tornam cada vez mais difíceis em um mundo que nos empurra para a conformidade. As mulheres de Tudo o que Imaginamos como Luz estão presas em uma sociedade que as vê apenas como peças funcionais, sem espaço para suas verdadeiras emoções e desejos. O filme, com sua estética e ritmo, reflete essa prisão silenciosa, mas também deixa espaço para a esperança de que a luz, mesmo que distante, possa finalmente chegar.

Ao longo da trama, a câmera de Kapadia se comporta como uma observadora silenciosa, sem interferir diretamente nas escolhas de suas personagens, mas sempre presente para capturar suas emoções e seus olhares de reflexão. Isso faz com que o filme se torne um convite à reflexão do público, que é chamado a se perguntar: “E nós, também estamos presos a esse ciclo urbano? Estamos, como Prabha, esperando por algo que nunca chega? Ou, como Anu, desafiamos as expectativas impostas a nós?”

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.