Crítica | Tudo O Que Você Podia Ser e as pessoas que te permitem ser quem você é

Crítica | Tudo O Que Você Podia Ser e as pessoas que te permitem ser quem você é

Gravado entre dezembro de 2021 e março de 2022, em Belo Horizonte, Tudo O Que Você Podia Ser tem direção de Ricardo Alves Jr. (“Vaga Carne”) e protagonizado por Aisha Brunno, Bramma Bremmer, Igui Leal e Will Soares, quatro artistas com reconhecida trajetória no teatro de Belo Horizonte. A narrativa conta a história de um grupo de amigas trans, travesti e não-binárias que vivem seu último dia juntas em Belo Horizonte, uma vez que Aisha está de partida para São Paulo para cursar faculdade de Ciências Sociais, e Igui logo deixará o país para fazer doutorado em Berlim. Com roteiro de Germano Melo, o enredo borra os limites entre o real e o ficcional e se desenrola através de momentos de encontro afetuosos entre as quatro personagens, que juntas compartilham suas dores e alegrias livremente, em uma conexão genuína que vai muito além do universo queer.

Para atingir esse resultado, alguns diálogos foram improvisados no set, seguindo indicações de direção e roteiro. Dessa forma, temas centrais como comunidade, HIV, afeto e sexualidade perpassam todas as cenas para criar um retrato coeso a partir das experiências vividas pelas quatro amigas. Seguindo um pouco o gênero “slice of life” – quando o realismo mundano das experiências cotidianas são o tema central de uma obra artística -, os pontos altos do filme são aqueles que conseguem captar a poesia dos momentos triviais e convidar o espectador a adentrar momentos íntimos de suas vidas, reforçado pelos enquadramentos “voyeur” em que a câmera observa através da fresta de uma porta ou janela, ora como observadora, ora como dispositivo de aproximação dos atores com o público.

As atuações são evidentes destaques da obra, com destaque para Bramma Bremmer que habita muita bem o ambiente hostil em que essas personalidades são obrigadas a florescer, sua risada um misto de euforia e desespero que traz uma nova camada à personagem e ao roteiro, mesmo nas cenas estereotipadas e por vezes artificiais de intolerância; no ônibus à noite, onde só estão Bramma e seus valentões, ou na cena em que sua mãe diz que gostaria de ter seu filho de volta, e não aquela “coisa” que se tornou.

Aisha Brunno, Bramma Bremmer, Igui Leal colocam aplique no cabelo de Will Soares, em cena sensível divertida (Foto: Divulgação/Vitrine Filmes)

Apesar dessas cenas pontuais, o grande crédito do filme está na desespetacularização da violência contra pessoas LGBTQIA+, fenômeno do qual o gênero de cinema queer já está saturado, e cujas cenas que apesar de necessárias, em determinadas obras, podem desumanizar suas vítimas e despertar gatilhos em atores e espectadores. O que esse tipo de cinema precisa agora, e a direção entrega de forma bela e sutil, é de histórias que mostrem a subjetividade dessas pessoas de forma humana, sensível e identificável. Por isso, o foco do filme nunca é a rejeição sofrida pela comunidade trans em seu cotidiano, que ainda está lá e não pode ser negada, mas a família que a gente escolhe, a última festa juntas, o momento agridoce de “nascer do sol melancólico” que as amigas testemunham uma última vez antes de cada uma seguir seu caminho.

É justamente durante essa sequência de clímax e despedida que a música “Tudo o que Você Podia Ser”, clássico do Clube da Esquina, que dá título ao longa-metragem, começa a tocar, em uma versão regravada especialmente para o filme pela cantora Coral, artista baiana radicada em BH, expoente da música popular brasileira na atualidade e uma das vozes da diversidade no Brasil. Nessa nota, confira abaixo um trecho da música cantada pela artista e uma das protagonistas do filme, Aisha, durante a Marcha do Orgulho Trans no dia 31 de maio de 2024 em uma das ações de divulgação do filme:

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