Crítica | Um Completo Desconhecido: você ama o artista ou o mito?
Searchlight Pictures/Divulgação

Crítica | Um Completo Desconhecido: você ama o artista ou o mito?

Quando se trata de Bob Dylan, a palavra “desconhecido” nunca parece estar muito longe. Mesmo após décadas de música, poesia e uma carreira que redefine o que significa ser um ícone cultural, Dylan permanece um quebra-cabeça. E é justamente essa aura de mistério que Um Completo Desconhecido, a mais recente cinebiografia dirigida por James Mangold, tenta explorar. Mas será que um filme pode realmente capturar a essência de um homem que sempre pareceu estar um passo à frente de qualquer tentativa de definição?

Como fã de Dylan desde os meus 18 anos, confesso que assisti o filme com um misto de expectativa e ceticismo. A paixão pelo artista surgiu em uma fase da vida em que tudo parecia possível, e suas letras eram como mapas para um mundo cheio de perguntas sem respostas. Agora, aos olhos de um espectador mais maduro, assistir a um filme sobre ele me fez refletir sobre como a arte tenta dar forma ao inefável. E, nesse sentido, Um Completo Desconhecido é uma obra que oscila entre o brilhante e o frustrante, como se tentasse abraçar um fantasma.

O filme começa com uma cena que já é uma declaração de intenções: um jovem Dylan, interpretado por Timothée Chalamet, caminha por uma rua onde os sons se misturam — folk, blues, o burburinho da cidade. É uma metáfora visual e sonora para o caldeirão cultural que moldou o artista. A direção de Mangold é certeira aqui, usando a cacofonia para sugerir que Dylan não era apenas um produto de sua época, mas alguém que sabia filtrar o caos em algo único. Essa introdução é, de longe, um dos momentos mais fortes do filme, e Chalamet brilha com uma energia que faz você esquecer, por um instante, que está vendo um ator e não o próprio Dylan.

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A cena seguinte, no hospital onde Woody Guthrie (Scoot McNairy) está internado, é outro destaque. A quietude do quarto contrasta com a agitação da rua, e a presença de Pete Seeger, interpretado por Edward Norton, acrescenta uma camada de reverência e melancolia. É aqui que o filme estabelece seu tema central: a relação entre o artista e suas influências, e como essas influências podem se tornar um fardo. Quando Dylan toca para Guthrie, há uma sensação de passagem de bastão, mas também de peso. A música, que deveria ser libertadora, já começa a ser cercada por expectativas.

Essa tensão entre criatividade e expectativa é o fio condutor de Um Completo Desconhecido. Mangold opta por não mergulhar profundamente na psicologia de Dylan, preferindo focar nas forças externas que tentam moldá-lo. É uma escolha interessante, mas que também deixa o filme com uma sensação de distância. Dylan, como personagem, parece sempre um passo à frente da câmera, como se o filme estivesse tentando capturar uma sombra. Isso pode ser intencional — afinal, Dylan sempre foi um mestre em criar e destruir mitos —, mas também pode deixar o espectador com a sensação de que algo está faltando.

A primeira metade do filme é dedicada à ascensão de Dylan no mundo folk, e é aqui que vemos algumas das melhores performances. Monica Barbaro, como Joan Baez, é uma presença magnética, e sua dinâmica com Chalamet é cheia de nuances. Baez é retratada como uma mentora e rival, alguém que entende Dylan, mas também representa o tipo de sucesso que ele começa a questionar. A cena em que eles discutem sobre a natureza da fama e da autenticidade é uma das mais poderosas do filme, e Barbaro rouba a cena com uma mistura de força e vulnerabilidade.

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No entanto, é na segunda metade que o filme realmente encontra seu ritmo. A transição para o Dylan elétrico é feita com uma maestria técnica impressionante. A cena de rua que abre essa parte do filme é uma inversão brilhante da abertura: agora, os sons são mais agressivos, mais caóticos, refletindo a mudança não apenas na música de Dylan, mas na cultura como um todo. A direção de Mangold aqui é quase impressionista, usando a edição e a trilha sonora para criar uma sensação de ruptura.

O clímax do filme, é claro, é o Festival Folk de Newport de 1965, quando Dylan “ficou elétrico” e foi vaiado por uma plateia que não estava pronta para vê-lo mudar. Essa cena é filmada com uma intensidade que faz você sentir o peso daqueles vaias. Boyd Holbrook, como Johnny Cash, aparece brevemente para oferecer um contraponto à reação negativa, e sua presença é um lembrete de que a inovação muitas vezes vem com um custo.

Tá, mas o que Um Completo Desconhecido realmente quer dizer com tudo isso? O filme parece sugerir que a arte, uma vez lançada no mundo, deixa de pertencer ao artista. Dylan, como figura pública, é moldado pelas expectativas dos fãs, pela ganância da indústria e até pelos desejos de seus pares. E isso levanta uma questão incômoda: até que ponto nós, como fãs, contribuímos para essa dinâmica? Quantas vezes congelamos nossos artistas favoritos em um momento específico, recusando-nos a deixá-los evoluir?

Essa reflexão metatextual é talvez o aspecto mais interessante do filme. Mangold, que já dirigiu “Jhonny e June”, sabe que está lidando com um gênero cheio de clichês. E, em vez de simplesmente reproduzir a fórmula, ele a subverte, usando a história de Dylan para questionar a própria natureza das cinebiografias. É uma abordagem corajosa, mas que também pode alienar parte do público.

Um Completo Desconhecido é um filme que tenta abraçar o inabarcável. Chalamet está incrível, a direção é competente, e as questões que o filme levanta são profundas. Mas, assim como Dylan em Newport, o filme desafia as expectativas de uma maneira que pode não agradar a todos. E talvez isso seja o mais Dylan possível: uma obra que se recusa a ser definida, que deixa perguntas no ar e que, no fim das contas, é mais sobre o espectador do que sobre o próprio artista.

Crítica | Um Completo Desconhecido: você ama o artista ou o mito?
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E é aí que volto ao meu eu de 18 anos, sentado no quarto ouvindo “Blowin’ in the Wind” pela primeira vez. Naquela época, Dylan era uma figura quase mítica, alguém que parecia ter todas as respostas. Agora, olhando para trás, percebo que talvez ele nunca tenha tido as respostas — apenas as perguntas certas. E Um Completo Desconhecido, com todas as suas imperfeições, consegue capturar essa essência. Não é um filme sobre respostas; é um filme sobre perguntas.

Mas o poder do cinema — ao menos para quem vos escreve — está em como ele consegue resgatar memórias e sentimentos adormecidos. No final do filme, senti uma vontade inesperada de pegar um violão e compor algo novo. Não será folk, nem terá a complexidade lírica de Dylan, mas será meu. E talvez essa seja a maior homenagem que um filme como esse poderia inspirar: não apenas reviver o fã que eu era, mas reacender a chama criativa que, em algum momento, também fez parte de quem eu sou.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.