Existe algo profundamente intrínseco à natureza humana na maneira como reagimos ao belo e ao grotesco, e Um Homem Diferente tenta, de maneira titubeante, explorar esse limiar. Sob a direção de Aaron Schimberg, alguém que carrega marcas de uma condição médica que moldou sua aparência e voz, o filme parece um reflexo de seu criador, um espelho que ao mesmo tempo revela e distorce. No entanto, ao confrontar os dilemas da exclusão e do desejo de pertencimento, a obra se enreda em suas próprias limitações narrativas, deixando a profundidade que promete no papel sem alcançar a tela.
O protagonista Edward, vivido por Sebastian Stan, é uma figura que nos força a encarar essa dualidade. Desfigurado pela neurofibromatose tipo I, ele é constantemente definido por sua aparência, sendo relegado a papéis caricaturais e subalternos em sua busca por uma carreira como ator. A angústia de Edward é palpável, mas seu desenvolvimento como personagem tropeça no roteiro, que se apressa a transformá-lo em um “homem novo” sem construir uma ponte emocional sólida para o espectador atravessar junto com ele.
Quem, afinal, é esse homem diferente?
Essa transformação física ocorre por meio de um tratamento revolucionário, mas é aqui que as fragilidades do roteiro ficam mais evidentes. A narrativa, em vez de aprofundar as camadas psicológicas dessa mudança, salta abruptamente para um Edward renovado, agora apresentando-se como “Guy” e abraçando uma nova vida superficial. Este é um ponto de ruptura: o que poderia ser um estudo íntimo e doloroso da identidade e do trauma torna-se uma sequência desconexa de eventos que oscilam entre o drama e o absurdo.
Ainda assim, existem pontos de brilho na produção. A trilha sonora composta por Umberto Smerilli é uma presença constante e eficaz, criando uma atmosfera de desconforto que o restante do filme raramente consegue traduzir. A música não tenta manipular emoções, mas oferece um pano de fundo inquietante que amplifica os momentos em que o longa se aproxima de suas promessas narrativas. Do mesmo modo, o design de produção traz um cuidado estético que reforça a sensação de deslocamento do protagonista, com cenários que transitam entre o banal e o opressivo, refletindo o estado de espírito de Edward.
Há também um intrigante jogo entre o real e o irreal, refletindo sobre identidade e aparência em camadas que se cruzam e se contradizem. Após uma transformação facial radical, o protagonista tenta reconstruir sua vida, mas descobre que sua nova aparência, longe de libertá-lo, apenas amplifica as dúvidas sobre quem ele realmente é.
Sua busca por autenticidade esbarra em uma realidade superficial, onde cada interação parece carregada de expectativas externas. Ironicamente, é no teatro — espaço dedicado à ficção — que sua história ganha uma sinceridade. Lá, uma peça inspirada em sua vida antes da cirurgia expõe suas dores mais profundas, criando um espelho desconfortável entre o homem que ele foi e o que tenta ser.
Os objetos de cena, especialmente uma máquina de escrever, desempenham um papel alegórico nesse embate entre o vivido e o inventado. A máquina, frequentemente em destaque, simboliza a tentativa de controlar a própria narrativa quanto a impotência diante das histórias que os outros criam sobre ele. O cenário sombrio, marcado por detalhes que evocam um mundo preso entre passado e presente, reforça o sentimento de que o protagonista vive em uma peça inacabada, tentando reconciliar o que é real com o que se tornou ficção de sua própria vida.
Por outro lado, a cinematografia deixa a desejar. Embora alguns enquadramentos e movimentos de câmera — como os zooms rápidos que remetem aos thrillers conspiratórios dos anos 1970 — tentem dar um ar de sofisticação, essas escolhas acabam mais contribuindo para a inconsistência tonal do filme. Em certos momentos, a obra flerta com o horror corporal, enquanto em outros descamba para um humor que, intencional ou não, quebra o impacto dramático. Essa indecisão estética é um reflexo direto do roteiro, que não parece saber se quer ser uma crítica social, um estudo de personagem ou algo inteiramente diferente.
O contraste mais marcante, no entanto, surge com a introdução de Oswald, interpretado por Adam Pearson. Pearson, que também apresenta os efeitos da neurofibromatose, traz autenticidade e carisma para a história. Diferentemente de Edward, Oswald é vibrante, confortável em sua pele e capaz de cativar as pessoas ao seu redor — incluindo Ingrid, a aspirante a dramaturga vivida por Renate Reinsve. Esse contraste escancara a profundidade que o filme poderia alcançar, mas que frequentemente evita em prol de uma trama que se desfaz em elipses e atalhos.
E Ingrid, por sua vez, é uma personagem que serve como ponto de convergência entre Edward e Oswald. Reinsve a interpreta com uma dose precisa de vaidade e ambiguidade, sugerindo que sua conexão com Edward, antes ou depois de sua transformação, talvez nunca tenha sido tão genuína quanto ele acreditava. Sua presença enriquece o filme ao criar um contraponto humano às obsessões e ressentimentos de Edward, mas mesmo assim, ela não consegue salvar uma narrativa que se afoga em sua própria indecisão.
Um Homem Diferente é uma obra que se assemelha ao protagonista que pretende retratar. Tanto o filme quanto Edward tentam se reinventar, escapar das marcas que os definem, mas ambos permanecem prisioneiros de suas fragilidades. O roteiro, como a pele de Edward, revela fissuras que comprometem sua integridade, tornando-o incapaz de sustentar as ideias que pretende abordar. É uma experiência que, embora tenha lampejos para debates mais profundos e intenções nobres, se desfaz diante de sua própria falta de coesão.
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