Crítica | 'Uma Batalha Após a Outra' é um épico moderno que entende conflitos de seu tempo
Warner Bros./Divulgação

Crítica | ‘Uma Batalha Após a Outra’ é um épico moderno que entende os conflitos de seu tempo

Poucos cineastas conseguem caminhar com tanta segurança entre a grandiosidade do mundo e a fragilidade das pessoas quanto Paul Thomas Anderson (PTA). Em Uma Batalha Após a Outra, ele mais uma vez prova ser um desses raros artistas que compreendem que os grandes acontecimentos – as guerras ideológicas, os sistemas opressores, os levantes históricos – são, antes de tudo, feitos por indivíduos. Gente comum, cheia de contradições, que ama, trai, erra, luta e sente.

A repressão de um Estado militarizado invade quartos, separa famílias, marca infâncias. A paixão de um casal se transforma em movimento armado. O abandono de uma filha se inscreve como cicatriz no mapa político de uma nação. Anderson filma tudo isso com um senso de escala que é tão emocional quanto geográfico.

O filme é épico, sim, mas nunca se perde no espetáculo. Sua força está em como a luta contra um sistema opressor se entrelaça com os nós da memória e do afeto. E é exatamente por isso que Uma Batalha Após a Outra nos pega tão de surpresa; ele é, ao mesmo tempo, uma obra monumental e uma história de amor partido. Uma ode à revolução que começa dentro de casa.

Inspirado livremente no romance “Vineland”, de Thomas Pynchon, o filme mistura drama familiar, ação e sátira política, sem nunca pender demais para um único tom. A estrutura narrativa – costurada em idas e vindas temporais, entre o passado rebelde e o presente entorpecido – se desdobra com precisão milimétrica graças a uma montagem que respeita a bagunça emocional dos personagens, mas jamais a desorganização do roteiro. É um filme que acredita no caos, mas não confia no improviso.

A trama gira em torno de Bob Ferguson (Leonardo DiCaprio), um ex-revolucionário da esquerda radical americana dos anos 1990, hoje um homem encalhado entre a nostalgia de seus atos heróicos e a paralisia provocada pela rotina decadente. Sua antiga companheira de armas – e de cama –, Perfidia (Teyana Taylor), foi capturada pelo governo anos antes, entregou boa parte do grupo sob tortura, mas poupou Bob. Dessa decisão, nascem feridas históricas e um elo invisível que atravessa o tempo: a filha dos dois, Willa (Chase Infiniti), adolescente criada longe da mãe, sequestrada pelo mesmo agente que destruiu a vida de Perfidia. Cabe a Bob, entre goles de cerveja e baforadas de maconha, tentar resgatar sua filha, e, quem sabe, a si mesmo.

A grandeza do filme está justamente em como essa narrativa, aparentemente simples, vai se expandindo como uma bomba de efeito moral. PTA constrói cada cena com a consciência de quem sabe onde pisa: o solo dos Estados Unidos contemporâneos, fissurado por décadas de militarismo, racismo estrutural e repressão ideológica. E mesmo assim, o filme nunca se rende ao panfleto. Em vez disso, ele opta por uma estética do delírio: cores saturadas, piadas – escritas e visuais – e um senso de movimento constante que transforma o espaço urbano em campo de batalha.

A cinematografia de Uma Batalha Após a Outra é essencial nesse processo. A câmera de Anderson – junto de Michael Bauman, seu diretor de fotografia de confiança — alterna momentos de contemplação sombria com sequências de ação frenéticas. Há uma cena específica em que o personagem de Benicio del Toro, um radical chamado Sensei Sergio, guia Bob por um esconderijo subterrâneo que abriga imigrantes e ex-guerrilheiros. A câmera desliza por corredores estreitos, ora colada aos rostos, ora flutuando acima dos corpos em fuga. Ali, o filme se transforma brevemente em uma dança, coreografada com tensão e lirismo. É nesses momentos que a obra atinge seu clímax estético e político.

Mas se há um personagem que rouba a cena – e talvez mereça um lugar entre os grandes vilões do cinema americano recente – é o coronel Steven J. Lockjaw, vivido por Sean Penn em modo completo de degeneração. Inspirado no fanatismo paranoico de figuras reais do aparato de segurança nacional, o personagem tem um quê de pesadelo nacionalista: olhos vítreos, mandíbula cerrada, discursos carregados de pavor moral. Ele é o fantasma de uma América que nunca deixou de existir. E que, como o filme insiste em nos lembrar, continua viva nas entranhas de instituições como o ICE e outras agências de repressão.

Crítica | 'Uma Batalha Após a Outra' é um épico moderno que entende conflitos de seu tempo
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A atuação de Penn é ao mesmo tempo grotesca e hipnótica, talvez por parece uma caricatura com lastro na realidade. Em um país acostumado a vilões que seduzem pela inteligência, Lockjaw se destaca pela sua brutalidade crua, pelo desejo de dominação misturado a uma obsessão pessoal: ele quer destruir Perfidia e, ao mesmo tempo, deseja possuí-la. A perversidade está nesse duplo impulso, que PTA filma com desconforto necessário. Não há erotização da violência aqui, apenas a exposição nua de um sistema que se alimenta dela.

Leonardo DiCaprio, por outro lado, entrega uma performance surpreendentemente desarmada. Seu Bob é patético sem ser risível, frágil sem ser fraco. Ele compõe o personagem como um homem que perdeu não apenas a guerra, mas também a si mesmo. Há uma cena, já no terceiro ato, em que Bob tenta consertar um carro antigo para perseguir Lockjaw. Ele falha, claro. Mas a maneira como DiCaprio lida com essa falha – entre o riso e o desespero – é um exemplo do controle absoluto que o ator tem sobre o tom da narrativa. Ele sabe que está num épico, mas se comporta como alguém vivendo uma tragicomédia doméstica. E isso é, no fim, o que o filme propõe, que a grande história se constrói nos pequenos gestos.

Crítica | 'Uma Batalha Após a Outra' é um épico moderno que entende conflitos de seu tempo
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O trabalho de Teyana Taylor também merece destaque. Sua Perfidia é, em muitos aspectos, o coração pulsante da história. Aparece em flashbacks como um furacão político e sexual, uma mulher que desafia não só o Estado, mas também os limites impostos à feminilidade nas narrativas de ação. Taylor injeta uma fisicalidade feroz no papel, sem abrir mão da complexidade emocional. Não é por acaso que a figura de Perfidia permanece assombrando o presente: ela é o que foi, mas também o que poderia ter sido. Sua ausência é uma presença constante.

Crítica | 'Uma Batalha Após a Outra' é um épico moderno que entende conflitos de seu tempo
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E tudo isso ganha camadas adicionais com a trilha sonora de Jonny Greenwood, uma das mais impactantes da sua carreira com PTA. O compositor utiliza instrumentos distorcidos, texturas eletrônicas e silêncios abruptos para sugerir uma tensão que nunca se resolve completamente. A música, aqui, não acompanha a imagem, ela parece estar a todo momento perseguindo-a. Como se o som também fosse um personagem, sempre tentando alcançar aquilo que o tempo já levou. É uma trilha que vibra com a ansiedade do agora, mas também ressoa com as dores de um passado mal resolvido.

Uma Batalha Após a Outra pode ser sintetizado como um filme sobre heranças. Não apenas as genéticas ou emocionais, mas as políticas e sociais. Ele pergunta o que deixamos para os nossos filhos, e responde sem ilusões: deixamos um país em chamas, mas também o desejo de reconstruí-lo.

Quando tudo parece se acomodar em uma espécie de paz instável, percebe-se que Uma Batalha Após a Outra não busca conclusões, mas continuidade. Ele é, em última instância, um filme sobre ciclos – e como rompê-los exige mais do que coragem, mas memória. Como uma partitura que se repete em variações infinitas, Anderson nos oferece um épico que não celebra heróis, mas compreende os fantasmas que nos forjam.

Uma Batalha Após a Outra é o melhor filme americano do ano não por sua grandiosidade formal – embora ela esteja lá, em cada enquadramento, em cada duelo de rostos colados dentro do quadro –, mas porque ele se atreve a perguntar: que batalhas ainda precisam ser travadas? E, mais importante, quem estará disposto a lutar?

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.