Crítica | Uma Mulher Diferente: retrato sensível, mas esquivo da descoberta tardia do autismo
Agat Films/Divulgação

Crítica | Uma Mulher Diferente: retrato sensível, mas esquivo da descoberta tardia do autismo

Uma Mulher Diferente coloca em foco uma problemática social frequentemente invisibilizada: a experiência do autismo no universo feminino. A partir da história de Katia ( Jehnny Beth), o filme propõe uma reflexão não só sobre a dificuldade de se encaixar em um mundo moldado por um único tipo de normalidade, mas também sobre a luta silenciosa que as mulheres autistas enfrentam para serem compreendidas – ou sequer reconhecidas.

A direção de Lola Doillon, que vem de uma linhagem cinematográfica sólida e multifacetada, com a herança de seu pai, o cineasta Jacques Doillon, e do cineasta Cédric Klapisch, é sensível e precisa ao abordar a questão do autismo. Em sua narrativa, o filme evita recorrer a clichês sobre o transtorno do espectro autista, trazendo à tona uma representação mais autêntica e documental da condição, principalmente no que diz respeito à vivência de mulheres com o diagnóstico tardio. Katia, que até então desconhecia a própria neurodivergência, vê sua vida transformar-se radicalmente ao receber a confirmação de que está no espectro autista. Essa descoberta não é um ponto de virada óbvio para uma superação, mas antes um convite a uma nova percepção de si mesma e das suas relações.

Um dos maiores méritos de Uma Mulher Diferente está na forma como a diretora se apropria de técnicas cinematográficas para ilustrar os desafios sensoriais e emocionais de Katia. A fotografia do filme, que flerta com o naturalismo, apresenta um tom claro e quase documental, usando planos próximos e angulações suaves que conferem uma intimidade delicada com a protagonista. É como se o espectador fosse convidado a habitar o espaço mental de Katia, a sentir seu desconforto e a tentar entender seus comportamentos, sem a pressa de rotulá-los. A direção de arte também segue essa linha, oferecendo um cenário funcional e sem exageros, reforçando a ideia de que Katia está constantemente fora de lugar em ambientes comuns.

Entretanto, a transição do filme para uma estrutura que abraça os elementos da comédia romântica (rom-com) acaba enfraquecendo o foco principal da narrativa. Embora o relacionamento de Katia com seu namorado, Fred (Hugo Becker), seja central na trama, o filme desvia sua atenção frequentemente para os tropeços típicos da relação amorosa. Essa escolha narrativa, embora faça sentido do ponto de vista comercial, prejudica a profundidade do tratamento da condição da protagonista, que fica em segundo plano em muitas cenas. As interações entre os dois são frequentemente conduzidas por diálogos que flertam com a comédia e o drama leve, mas carecem da densidade emocional necessária para que o espectador compreenda completamente a angústia da protagonista. Nesse sentido, o filme perde uma oportunidade valiosa de explorar mais a fundo as complexidades do autismo feminino.

Jehnny Beth (conhecida também como vocalista da banda Savages) desempenha um papel desafiador e impressionante como Katia. Sua atuação é marcada por um nível de sutileza que torna possível acompanhar a inquietação de sua personagem sem que ela precise recorrer a exageros ou maneirismos. A atriz constrói uma Katia com gestos contidos, olhares que comunicam um turbilhão interior, e uma capacidade de expressar as flutuações emocionais da personagem com uma precisão impressionante. No entanto, há momentos em que o comportamento de Katia se torna excessivamente infantil, o que pode soar forçado em alguns contextos. Esse aspecto, talvez uma escolha de direção, parece visibilizar a tensão entre a busca por realismo e a tentativa de tornar a personagem mais acessível ao público.

Outro ponto de destaque no filme é a atuação de Julie Dachez, psicóloga e ativista especializada nos direitos das pessoas autistas, que interpreta uma versão fictícia de si mesma. Seu papel como consultora da personagem de Katia ajuda a trazer uma camada de verossimilhança à abordagem do filme. Sua presença em cena proporciona um tom de autoridade e autenticidade, algo que se reflete diretamente na construção do universo da protagonista. A relação entre Katia e Dachez, embora secundária, oferece uma perspectiva crítica interessante sobre o impacto do diagnóstico tardio e a forma como a sociedade tende a ignorar as manifestações de autismo em mulheres.

No entanto, o filme falha em sua tentativa de retratar o impacto social do autismo sem cair em uma estrutura narrativamente rígida. A história de Katia não é suficiente para sustentar o peso de suas complexidades internas e sociais, especialmente quando se leva em conta o dilema do isolamento no ambiente de trabalho, sua relação com a mãe, e a constante tensão com o namorado. A história de amor com Fred, um personagem muitas vezes confuso e difícil de compreender, acaba ofuscando a real essência do filme, deixando o público com um gosto amargo sobre as relações interpessoais da protagonista. Fred, por sua vez, é retratado como um sujeito que, ao se mostrar insensível e egocêntrico em diversas situações, compromete ainda mais o desenvolvimento do personagem de Katia. Essa relação, que poderia ser um ponto de tensão interessante, se torna, ao final, um caso de redenção fácil típico de comédias românticas.

Outro ponto que merece ser criticado é a superficialidade com que o filme lida com os sintomas mais complexos do autismo, como a misofonia e o autoestimulação. Embora esses aspectos apareçam na narrativa, a forma como são explorados não dá conta de aprofundar a experiência sensorial da personagem. Aqui, o filme perde uma grande oportunidade de se aprofundar nas nuances do transtorno, utilizando-se de uma abordagem mais visual e experimental para transmitir a sobrecarga sensorial vivida por Katia. Isso é especialmente triste, pois a estética do filme, com suas cenas de claustrofobia e foco em ambientes estéreis, poderia ter se aproveitado muito mais dessa ferramenta para retratar o caos interno de Katia.

Em suma, Uma Mulher Diferente é uma obra que acerta ao trazer a tona questões essenciais sobre o autismo, mas falha ao não aproveitar completamente o poder do cinema para aprofundar essas questões de maneira mais visceral.

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