Em um mundo hiperconectado, onde a identidade muitas vezes se dilui atrás de telas e perfis, a premissa de Voz de Aluguel soa como um campo fértil para explorar questões profundas de autenticidade e performance. O filme de Fabienne Godet nos apresenta Pierre, um escritor consagrado vivido por Denis Podalydès, que, em um ato de desespero criativo, terceiriza sua própria existência telefônica. O escolhido para esse papel peculiar é Baptiste, um imitador talentoso, mas subestimado, que Salif Cissé interpreta com uma doçura e carisma cativante. A sinopse promete um vaudeville moderno, repleto dos inevitáveis equívocos que surgem quando uma vida é interpretada por um substituto. E, nesse aspecto, a comédia cumpre seu papel. No entanto, ao embarcar na sessão, é impossível não sentir que o longa, apesar de ágil e bem-humorado, opta por navegar em águas mais seguras e açucaradas, deixando para trás a complexidade temática que sua própria estrutura narrativa sugere.
A direção Godet, conhecida por seus trabalhos anteriores com um viés social mais marcante, aqui se volta para um território mais leve. Sua mise-en-scène é funcional, clara e serve bem ao propósito de entreter, mas carece de um olhar mais ousado ou de assinaturas visuais mais marcantes. A fotografia, dentro da estética padrão das comédias francesas contemporâneas, é limpa e bem iluminada, garantindo que a atenção do espectador permaneça nos diálogos e nas expressões dos atores. Não há, por exemplo, jogos de luz e sombra mais dramáticos ou enquadramentos que perturbem – a narrativa flui de maneira linear e descomplicada. A montagem segue essa mesma lógica, priorizando o ritmo cômico e a clareza das situações de confusão, sem se aventurar em cortes mais experimentais que poderiam refletir a duplicidade e a crise de identidade dos personagens.
É justamente nesse ponto que reside a grande charme e, simultaneamente, a leve frustração que Voz de Aluguel provoca. O mote central – um homem negro se passando por um homem branco bem-sucedido – é uma mina de ouro dramática e social. A história poderia se aprofundar nas nuances do privilégio, na performatividade racial, na máscara social que todos usamos, e na diferença crucial entre atuar uma vida e imitá-la. A atuação, no sentido artístico, envolve uma interiorização, uma busca por verdades emocionais. A imitação, por outro lado, é muitas vezes, mais sobre a superfície, a captura de maneirismos e da cadência vocal.

O filme toca nisso sutilmente, especialmente na cena em que Baptiste tenta capturar a voz de Pierre, um momento onde Cissé demonstra seu talento, fazendo-nos crer na impossibilidade. Contudo, a diretora escolhe não cavar mais fundo nessa veia rica. Em vez disso, o roteiro segue pelos caminhos bem-pavimentados das comédias românticas e dos embaraços situacionais.
Há um plano, no entanto, que destoa dessa segurança e revela um vislumbre do filme que poderia ter sido. Em uma cena, os dois protagonistas estão sentados à mesa, e o enquadramento aproveita o vidro espelhado da mobília. A imagem duplica-os, funde-os, confunde-os. É um momento de rara beleza e significado, sugerindo visualmente que as identidades estão prestes a se fundir, que um homem deixará de ser simplesmente a sombra do outro para, talvez, se tornar uma parte dele, e vice-versa. É uma metáfora visual poderosa para a trama, um instante em que a linguagem cinematográfica fala mais alto que os diálogos. Infelizmente, é uma exceção em um conjunto que prefere a clareza à ambiguidade poética.
Isso não significa, de forma alguma, que o longa seja uma decepção. Muito pelo contrário. Como comédia, ele é um respiro de ar fresco em meio a produções francesas que, por vezes, pecam pela grosseria ou por um humor excessivamente forçado. O roteiro é leve, inteligente e os diálogos soam naturais, o que confere autenticidade aos personagens. Cada um deles, dos protagonistas aos coadjuvantes, como a amiga estilista de Baptiste (Manon Clavel) ou a amante de Pierre (Aure Atika), possui uma voz própria, uma presença que vai além do arquétipo.
Podalydès está no auge de sua forma, transmitindo a exasperação e a fadiga intelectual de Pierre com um olhar ou um suspiro. E Cissé é a verdadeira alma do filme. Ele consegue equilibrar o humor das imitações com uma profunda humanidade, mostrando um tipo de masculinidade que não teme demonstrar suas fragilidades e sua afetuosidade. A química entre os dois é palpável e constitui a espinha dorsal do projeto.

A narrativa, ao focar na “gestão” da vida de Pierre por Baptiste, acaba por questionar, ainda que de forma sutil, nossa dependência das conexões virtuais e a dificuldade de estarmos verdadeiramente sozinhos com nossos pensamentos. A premissa do telefone, um objeto tão banal, torna-se um portal para discussões sobre solidão e a autenticidade das relações em um mundo mediado por aparelhos. O filme sugere que, às vezes, é preciso que um estranho interprete nossa vida para podermos enxergar suas distorções e belezas.
Voz de Aluguel é um daqueles filmes que agrada, diverte e deixa um gosto bom, mas que fica a sensação de que o potencial não foi totalmente explorado. A opção por um caminho mais óbvio, repleto de clichês de comédias românticas e de situações familiares, em detrimento de uma análise mais corajosa sobre identidade, raça e performance, faz com que a obra se contente em ser uma ótima comédia, quando poderia ser uma comédia com mais camadas. A complexidade dos temas foi, em parte, sacrificada no altar do entretenimento leve. Ainda assim, é uma recomendação fácil e prazerosa. É o tipo de filme perfeito para um domingo ensolarado, para assistir com a família. Uma comédia bem-acabada, bem-interpretada, e cumpre sua principal missão: fazer-nos rir e refletir, nem que seja só um pouquinho.
Voz de Aluguel compõe a programação da 16ª edição do Festival de Cinema Francês.
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