A mãe com seu bebê passeia pelo jardim e cheira uma rosa. A família se reúne para aproveitar a piscina em um dia ensolarado. Este e outros corriqueiros momentos compõem o dia a dia de uma família alemã em sua casa bem cuidada e espaçosa. Aos fundos, escutamos gritos, tiros, e durante a noite, uma fumaça enorme saindo da chaminé no campo de concentração localizado bem ao lado. É um crematório. E o cheiro deixado no ar também não é dos melhores.

Jonathan Glazer (“Sob a Pele”) mostra que, impressionantemente, o cinema ainda tem o que dizer sobre o Holocausto. O Britânico – e judeu – assina a direção de Zona de Interesse, uma potente e livre adaptação do celebrado livro de mesmo nome, do recém-falecido Martin Amis, publicado no Brasil em 2015 pela Companhia das Letras. O filme foi premiado no Festival de Cannes e concorre em 5 categorias no Oscar de 2024, incluindo melhor direção e melhor filme.

Um dos motivos que fizeram Zona de Interesse se tornar um longa tão aclamado foi sua proposta e forma. Ele é um filme sobre holocausto que não mostra absolutamente nada do que acontece dentro do campo de concentração de Auschwitz, mas que consegue ser da mesma maneira impactante, e monstruosamente angustiante.

Aqui, acompanhamos a vida idílica da família do comandante do campo, que mora nesta casa bem estruturada localizada ao lado do local onde centenas de judeus são mortos e torturados diariamente.

A grande sacada do longa é justamente ousar em mudar a perspectiva de uma história sobre holocausto, e utilizar o conhecimento do público dos fatos para preencher as lacunas do que estamos assistindo. Ao saber do que está acontecendo – literalmente ao lado – , e não mostrar, o corriqueiro torna-se ainda mais assustador e incômodo. E o mais desconcertante é presenciar que todas estas atrocidades ocorridas na vizinhança não afeta em nada quem mora na casa. É a banalidade do mal em sua plena forma, e portanto, ainda mais monstruosa e desumana.

Diferente do livro, o longa usa nomes reais e a família em questão é a de Rudolf Höss (Christian Friedel), comandante por dois anos do campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia, e de sua esposa Hedwig Höss (Sandra Hüller). No filme, os dois viviam ali com os filhos, a mãe de Hedwig, vários serviçais e um simpático cachorro, desfrutando de uma vida bucólica, repleta de fartura e segurança.

Hedwig orgulha-se de ter planejado tudo: a casa, o jardim e o entorno. Ela dedica-se com esmero à criação dos filhos e ao jardim da família. Nos dias quentes de verão, sobram dias de churrasco com a criançada, passeios no rio e banhos de piscina no verão. “Só saio daqui arrastada”, diz ela em certo momento à mãe.

Glazer, que tem um histórico com publicidade e videoclipes “fora da caixa” – como, por exemplo, o clipe de “Karma Police” do Radioheas – se utiliza de três pilares para contar sua história. Dois por meio das técnicas Cinematográficas e um por conta do talento de seus protagonistas.

O som e o poder da sugestão são pontos fortíssimos na imersão que o filme te pede para poder compreender sua mensagem completa. Já o terceiro pilar reside na indiferença que o comandante do campo de extermínio e sua esposa sustentam. Eles não são alheios ao que acontece bem debaixo de seu nariz. Eles são simplesmente indiferentes.

Quando se é alheio, o mundo ao redor parece invisível, interessando apenas o próprio umbigo. Mas quando se é indiferente, tem-se plena consciência de tudo ao redor, e o juízo de valor é o que rege as ações. Esse traço é certamente parte da banalidade do mal, mas uma parte que não foi tão explorada por Arendt em seu “Eichmann em Jerusalém”.

Rudolf e Hedwig estão convictos de que estão do lado certo, agem com naturalidade, incorporam o Holocausto ao seu cotidiano mundano de uma forma assustadora. Em uma das cenas, Hedwig e algumas colegas conversam dentro de casa sobre casaco de peles que vieram do “Canadá”, não do país, mas de galpões em Auschwitz apelidados dessa forma porque eram neles onde os judeus recém-chegados ao campo deixavam os seus pertencem – o local era chamado assim porque o Canadá era considerado o país mais próspero do mundo na época.

A família Höss está ao lado do inferno, mas isso não provoca problemas de ordem moral no casal. Isso não quer dizer que Auschwitz fique da porta para fora. Nada disso. Embora a casa seja ampla, ventilada, arborizada e até ensolarada, ela está longe de ser impenetrável. Os horrores que ocorrem a poucos metros dela estão sempre presentes na sua atmosfera. Durante todo o filme escutamos latidos de cachorros, gritos de guardas e disparos. Há poloneses escravizados dentro da casa; um jardineiro judeu se esgueira pela casa da família, em segundo plano. Em várias cenas vemos, de diferentes ângulos, as chaminés do campo e as torres de vigilância. O espaço jamais é totalmente o da vida privada. Há uma confusão entre o público e o privado, entre o que é do Reich e o que é dos Höss. Essa simbiose é bem expressa em um diálogo entre Rudolf e Hedwig após ele receber uma ordem de transferência para a Alemanha. Hedwig recusa-se a deixar o lugar, mesmo que isso signifique Rudolf vivendo em outro lugar. Em defesa de sua proposta, Hedwig fala que aquela casa não era apenas o sonho da vida deles, desde a adolescência, mas o seu “espaço vital” (termo usado pelos nazistas para justificar a expansão e ocupação do leste europeu).

Em outros momentos do filme, os acontecimentos do campo agem no subconsciente da família, caso de uma filha do casal, que vive perambulando, sonâmbula, pela casa, à noite, situação reforçada pelas histórias que o pai lhe conta antes de dormir, como a de “João e Maria”, dos Irmãos Grimm, que desde o início do século XIX eram contadas às crianças alemãs a fim de produzir efeitos moralistas e disciplinadores.

Glazer sabe muito bem que estamos acostumados com essa estética do Holocausto. E por isso, nada disso está no primeiro plano em seu Zona de Interesse. Tudo está no fundo, desfocado, nas beiradas, entrando pelas frestas, sem filtros. A direção joga, deste modo, com o que já sabemos, com o que já aprendemos sobre o Holocausto, e isso é fundamental para que ele nos apresente o que não sabemos.

Vale a pena destacar o trabalho da atriz Sandra Hüller, que concorre ao Oscar de melhor atriz, mas por outro filme em cartaz, o excelente “Anatomia de uma queda”. Hüller é precisa na construção de uma Hedwig orgulhosa, manipuladora e vaidosa. Ela gosta de ser chamada de “Rainha de Auschwitz” e se satisfaz com a chegada da mãe, que vê nos olhos da filha a sua realização. “Você se deu muito bem, minha filha”. A cena em que as duas passeiam pelo belo jardim da casa é uma das melhores do filme. Mãe e filha tem um diálogo absolutamente repulsivo sobre os judeus, mas entrecortada com comentários amenos sobre azaleias e outras iguarias plantadas nos fundos da casa principal. Essa dinâmica entre o belo e o grotesco, a morte e a vida, o sujo e o limpo, marcam o filme inteiro.

Esteticamente, o filme mistura diversas linguagens para produzir a noção de indiferença e tormento. Telas pretas ou vermelhas aparecem aqui e ali. Sons abafados e constantes carregam a narrativa, não nos deixando esquecer do que se trata tudo aquilo. Há também cortes abruptos e cenas de baixa iluminação que lembram muito certas instalações exibições de arte contemporânea. Talvez isso tenha a ver com a tradição teatral de Glazer – antes de ir para o cinema, o diretor trabalhou por vários anos com teatro.

Tecnicamente é não só o melhor dessa temporada de premiação, mas um dos melhores filmes dos últimos anos em som. Poucos longas utilizam do recurso tão bem narrativamente e executado de maneira tão certeira. O mesmo pode-se dizer sobre o trabalho de direção e elenco, que atuou numa casa cheia de câmeras, com quase nenhum membro da equipe, dando mais espaço para improvisos e deixando tudo mais verossímil.

Não importa o quanto você já tenha visto no cinema sobre o Holocausto, Zona de interesse vai te mostrar pontos de vista que são inéditos ou pouco usuais. Uma obra que nos leva ao âmago da indiferença que pauta a banalidade do mal.

Incomodativo, violento com sutileza e com uma mensagem profunda para reflexão, o filme corta fundo em nossa alma, mostrando que o ser humano pode ser impiedoso com seus semelhantes para alcançar seus objetivos.

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