Cinema Nacional
Foto: reprodução/cnn brasil

Especial Mês do Cinema Nacional | Por que o cinema brasileiro ainda sofre preconceito? 

O Brasil tem uma das cinematografias mais ricas, diversas e inventivas do mundo. De “Central do Brasil” (1998) a “Cidade de Deus” (2002), passando por pérolas do cinema de gênero como “O Animal Cordial” (2017) e “Bacurau” (2019), as produções nacionais mostram que somos capazes de contar histórias complexas, emocionantes e ousadas. Mas, apesar da qualidade crescente e da pluralidade temática, o cinema brasileiro ainda sofre com o preconceito do próprio público.

Você provavelmente já ouviu alguém dizer que “filme brasileiro é tudo igual” ou “só tem palavrão e favela”. Frases assim não só reduzem o potencial artístico do país, como também revelam uma visão distorcida e limitada, herdada de décadas de desvalorização cultural. Neste mês dedicado ao cinema nacional, é hora de olhar com mais atenção para esse fenômeno. Afinal, por que ainda existe tanta resistência? E como isso interfere diretamente na bilheteria, no financiamento e no futuro do setor?

Cinema Nacional
Foto: reprodução/prefeitura de santos

O mito do cinema brasileiro ruim

Muitos brasileiros cresceram ouvindo que o cinema nacional é sinônimo de baixa qualidade. Essa percepção começou a se formar ainda na década de 70, quando a produção nacional era dominada pelas pornochanchadas, filmes de comédia com apelo sexual e roteiros simples. Apesar de fazerem sucesso com o público da época, essas obras contribuíram para a imagem de um cinema menor, superficial e caricato.

Nos anos 80 e 90, o cenário enfrentou uma forte crise, marcada pela redução de verbas e uma quebra quase total da cadeia de produção. Isso fez com que poucos filmes chegassem ao público, e os que conseguiam exibição muitas vezes não competiam tecnicamente com os blockbusters americanos. Com som deficiente, roteiros fracos e pouca divulgação, o preconceito só se enraizou mais.

Foi só com a retomada do cinema nacional, a partir de 1995, que o setor começou a se reerguer. Filmes como “Carlota Joaquina” (1995), “O Quatrilho” (1995) e “Central do Brasil” (1998)  recolocaram o Brasil no mapa das grandes premiações internacionais. Ainda assim, a fama de “cinema ruim” persistiu, sendo passada adiante quase como um senso comum.

Cinema Nacional
Foto: reprodução/cinema da fundação

O peso da comparação com Hollywood

Não dá para ignorar a influência massiva da indústria americana no Brasil. Desde cedo, somos expostos a filmes dos Estados Unidos que dominam as salas de cinema, os serviços de streaming e a publicidade. O padrão de qualidade técnica, os efeitos especiais, a linguagem universalizada e os astros globais acabam moldando o gosto do público.

Com isso, o cinema nacional é visto por muitos como uma espécie de “versão inferior”. Ao comparar um filme brasileiro com uma superprodução hollywoodiana de 200 milhões de dólares, fica fácil ignorar a criatividade, a inventividade e os recursos limitados que os nossos diretores enfrentam.

Além disso, muitos espectadores brasileiros se esquecem de considerar a própria identidade cultural. Esperar que o cinema nacional reproduza a estética e as temáticas americanas é não entender o papel da arte como expressão local. É também fechar os olhos para a possibilidade de contar histórias que falam diretamente sobre quem somos, com todas as contradições, belezas e complexidades que isso envolve.

Estereótipos que se repetem

Um dos argumentos mais comuns usados contra o cinema brasileiro é a suposta repetição de temas: violência urbana, pobreza, corrupção, dramas sociais e comédias escrachadas. É verdade que esses temas aparecem com frequência, mas há uma razão para isso. O cinema, como qualquer forma de arte, reflete a realidade do seu povo. E no Brasil, essa realidade é marcada por desigualdades profundas, conflitos sociais e tensões políticas.

O problema está na generalização. Quando um filme de ação americano mostra Nova York em chamas ou um psicopata matando adolescentes em um acampamento, ninguém diz que “todo filme americano é igual”. Mas basta o Brasil retratar sua própria violência ou suas contradições sociais para surgirem as críticas de que “só fazem filme de favela”.

Esse recorte limitado apaga uma variedade imensa de produções que fogem do estereótipo. Filmes como “Que Horas Ela Volta?” (2015), “A Vida Invisível” (2019) , “Medida Provisória” (2022), “O Lobo Atrás da Porta” (2013) , “Turma da Mônica – Laços” (2019), “Marte Um” (2022), “Ainda Estou Aqui” (2024)  e até animações como “O Menino e o Mundo” (2013) mostram que há um leque de gêneros e estilos sendo explorados com sensibilidade e inovação.

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Foto: reprodução/geek city

A distribuição como gargalo

Outro fator que afeta diretamente a percepção do público é a distribuição. Um filme brasileiro raramente estreia com o mesmo peso de marketing, quantidade de cópias e destaque nas redes de cinema quanto uma produção americana. Mesmo quando ganham prêmios ou elogios da crítica, muitos longas brasileiros são lançados em poucas salas, com horários ingratos e campanhas tímidas.

Isso cria um ciclo perverso. Sem visibilidade, o público não assiste. Sem público, o filme não tem bilheteria. Sem bilheteria, o próximo projeto tem mais dificuldade de conseguir financiamento. E assim por diante.

Em um país de dimensões continentais como o Brasil, com uma enorme diversidade cultural, regional e social, limitar o acesso a produções nacionais é desperdiçar o potencial de um mercado interno riquíssimo. E pior: é manter o público refém de uma narrativa única, vinda de fora.

Streaming e novas possibilidades

Se por um lado as salas de cinema ainda impõem barreiras, o streaming vem abrindo novas janelas para o cinema nacional. Plataformas como Netflix, Globoplay, Prime Video, MUBI e outras têm investido em conteúdo brasileiro e ampliado o alcance das produções. Séries como “Sintonia” (2019 – 2024), “Cidade Invisível” (2021 – 2023), “Bom Dia, Verônica” (2020 – 2024) e filmes como “7 Prisioneiros” (2021) e “Depois do Universo” (2022)  provaram que existe sim demanda por histórias contadas por brasileiros.

O desafio, no entanto, continua sendo formar o olhar do público. Se a plataforma oferece o conteúdo, mas o usuário já parte da ideia de que “filme brasileiro não presta”, o acesso se torna inútil. Por isso, além da produção e da distribuição, é essencial investir em educação audiovisual, crítica de cinema e curadoria nas plataformas.

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Foto: reprodução/o grito

Uma mudança de olhar é mais do que urgente!

Celebrar o mês do cinema nacional vai muito além de enaltecer alguns clássicos ou relembrar sucessos pontuais. É um convite à reflexão sobre como enxergamos a cultura produzida aqui. É questionar os preconceitos herdados, entender os contextos históricos e sociais, e abrir espaço para novas experiências.

O cinema brasileiro tem qualidade, tem diversidade, tem talento. E mais do que nunca, precisa ser defendido e valorizado. O preconceito contra as nossas produções não prejudica apenas os filmes, ele afeta toda uma cadeia criativa que inclui roteiristas, diretores, técnicos, atores e profissionais que vivem da arte.

A mudança começa quando o espectador decide dar uma chance ao que é nosso. Quando escolhe assistir a um filme nacional com a mesma curiosidade com que vê uma produção internacional. Quando entende que contar nossas próprias histórias é um ato de resistência, identidade e pertencimento.

Neste mês do cinema brasileiro, o melhor que você pode fazer é simples. Escolha um filme nacional. Assista sem preconceito. Converse sobre ele. Compartilhe com amigos. Apoie produções independentes. E, acima de tudo, permita-se descobrir que o cinema feito aqui também pode emocionar, divertir e transformar… tanto quanto qualquer superprodução estrangeira.

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Jornalista e formada em Cinema, apaixonada por cultura asiática e por contar histórias. Provavelmente já assisti tanto aos filmes do Adam Sandler que poderia atuar em qaulquer um sem precisar de roteiro.