Jordan Peele e os olhares pretos no cinema

Olhares expressivos, algo forte para os filmes e algo em comum entre os dois protagonistas dos primeiros longas do diretor Jordan Peele. Isso poderia ser um detalhe em comum, ou coincidência se esses não fossem filmes deste criador. O mesmo que já expressou fora das telas, que suas obras são projetadas da perspectiva de protagonistas pretos. É a partir desta afirmação que farei uma análise sobre Corra! e Nós.

Antes de discorrer sobre os longas, como se trata de uma análise das obras, o texto estará repleto de spoilers. Leia por sua conta em risco!

Os clichês dos negros em filmes de gênero –o preto vai ser o primeiro a morrer, ok? –, chegaram ao ponto de se tornarem piadas em algumas franquias. Nos dois filmes em questão, eles são aplicados, ao mesmo tempo em que são deturpados a todo momento. Claro, é mérito do roteiro, mas elas funcionam de forma tão natural – até mesmo incômoda para alguns – porque o criador é negro.

Vamos para a final de Corra! e para o primeiro ato de Nós. Após se livrar da família que faz transplante cerebral em negros, Chris (Daniel Kaluuya) vê no horizonte uma viatura. A reação dele é a mesma do público: ele será preso e culpado – se não for morto! –, independente da versão que ele contará da história.

Já em Nós, toda a construção do tradicional arco da família indo para uma casa veraneio, distante da cidade, é similar ao que vemos em muitos filmes. Cores fortes, sol, clima good vibes de férias, tudo está lá.

Essa atmosfera é criada para contrastar posteriormente com o horror que virá a seguir. Mas vamos notar a cena em que há policiais controlando o trânsito após um homicídio. É notória a diferença da reação de Adelaide (Lupita Nyong’o), que desconfia do que se trata do restante dos Wilson, principalmente quando os oficiais se aproximam. Mesmo levemente abastados, eles são negros.

Algo que reforça essa sensação direta com o público preto, é quando há, no segundo ato, um massacre na casa dos Tyler – os amigos brancos. Eles resolvem descansar no local. Ainda que distante da capital, a polícia poderia chegar a qualquer momento, causando uma sensação de perigo, mesmo num momento sem ação.

Agora podem parecer uns que digam que esse tipo de situação sempre acontece em filmes do gênero, mas a polícia nunca é um fator de perigo, mesmo que existam filmes com pretos – mas é só um! A diferença está aí. Peele, sacana como é, ainda usa a música “Fuck That Police” do N.W.A. para criar uma cena cômica e tensa, onde se cria uma rima com a cena seguinte.

Jordan Peela e os olhares pretos no cinema

Por ter assistido Corra! duas vezes, alguns detalhes que estavam – literalmente – na minha cara. E em vários desses momentos, estão no bloco mais agoniante do filme: a festa.

Todo preto que esteve em um ambiente chique cheio de gente branca sente o que Chris demonstrava por meio de olhares –que trabalho interpretativo incrível. Todas aquelas perguntas envolvendo todo o tipo de objetificação do corpo preto é muito recorrente, inclusive no meio que estamos inseridos – aquele que está no twitter, paga de alternativo e ouve podcast. E o filme faz questão de demonstrar isso em falas como “eu votaria no Obama de novo” e “Negro está na moda, não é?”

Aqui, vários pontos são debatidos, como a objetificação e sexualização do corpo negro. Outro ponto: A crença de que o preto só é competente nos esportes, e o pior, a suposta “moda”, como se fosse algo exótico, em que os brancos podem se “fantasiar” de negros gente preta.

Aqui também temos mais um momento que é usado como brincadeira no cinema: quando Chris encontra um preto na festa, ele se sente automaticamente mais confortável. Isso me lembrou, de cerca forma, de uma famigerada cena de “Não é Mais um Besteirol Americano”, onde dois negros se encontram em uma dessas festas. Logo, um deles se desculpa e fala que vai embora, afinal, só pode ter um preto nesse tipo de filme.

Para finalizar, não podemos esquecer as cenas mais impactantes e metafóricas do filme: quando Chris sendo hipnotizado. A hipnose, assim como a lobotomia são metáforas que Jordan Peele utilizou para discutir algo muito sério: para dominar uma pessoa ou grupo é preciso fazê-lo acreditar em sua inferioridade. Então, ao longo de séculos foi construído uma ideologia perversa em que o negro foi colocado como inferior.

Como cinema, Peele decidiu brincar com ideia visual em que Chris estava em um plano que ele não é ouvido, vai se afastando e diminuindo. O “mundo real”, está em um portal que lembra muito uma tela de cinema. Nela, só aparecem brancos. Esse é o recado e a cena do olhar assustado do protagonista.

O filme é de 2017, mas pela forma na qual a obra foi absorvida por público e crítica fica claro que, em 2024, podemos definir que Corra! Se tornará um clássico do gênero terror, Nós possivelmente não, mas é inegável que é obra a ser revisitada e prima por sua originalidade, e claro, sobre a autocrítica estadunidense, feita por um afroamericano. E em momentos político-sociais tão malucos que o mundo e principalmente o Brasil estão passando, criadores como Peele são cada vez mais necessários. Afinal, se você é preto, pobre e favelado: Corra!

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.