Olhar fixado, assustado e bastante expressivo. Essa descrição já é uma marca registrada dos protagonistas dos três filmes de Jordan Peele. Embora pareça uma coincidência, o próprio realizador já expressou publicamente que suas obras são projetadas da perspectiva de protagonistas pretos, independente do enredo. É a partir desta afirmação que entendemos como o “olhar negro” é bem mais que escalar atores pretos em seus filmes, mas também recados para o público de outras raças — principalmente brancos — de suas obras.
Antes de discorrer sobre os longas “Corra!” e “Nós”, vale ressaltar que o texto estará repleto de spoilers de ambos os filmes. Então, leia por sua conta em risco.
Negros no cinema de gênero
Os clichês dos negros em filmes de gênero — o preto vai ser o primeiro a morrer, ok? — , chegaram ao ponto de se tornarem piadas em algumas franquias. Como não lembrar das primeiras vítimas de Pânico 2? No mesmo filme, um cinegrafista preto, consciente que estava em um filme de terror, sai de cena antes que ele morra. À sua maneira, Peele também utiliza dos mesmos clichês, enquanto os deturpam sempre que possível. Claro, é mérito do roteiro, mas essas cenas só funcionam de maneira tão natural — e incômoda, para alguns — justamente pelo criador ser negro.
Basta irmos para o final de Corra! e para o primeiro ato de Nós. Após se livrar da família que faz transplante cerebral em negros, Chris (Daniel Kaluuya) vê uma viatura no horizonte. A reação dele é a mesma do público: ele será preso e culpado (senão for morto!), independente da versão que ele contará da história.
Já em Nós, toda a construção no primeiro ato de um grupo — nesse caso, uma família — indo para uma casa veraneio, distante da cidade, é similar ao que vemos em muitos filmes de terror antes da matança começar. Mas Peele nos dá um recado, bem sutil, na cena em que há policiais controlando o trânsito após um homicídio pelas redondezas. É notória a diferença da reação de Adelaide (Lupita Nyong’o), para a família Tyler — os amigos brancos — , principalmente quando os oficiais se aproximam. Afinal, mesmo abastados, eles ainda são negros.
Fuck That Police
Mais adianta, a mensagem é reforçada quando há, no segundo ato, um massacre na casa dos Tyler. Peele, sacana como é, ainda usa a música Fuck That Police do N.W.A. para construir uma cena cômica e tensa, onde se cria uma rima visual/musical com a cena posterior.
Reasssitir Corra! é uma recomendação muito forte que faço aqui. Alguns detalhes que estavam — literalmente — na minha cara, eu deixei passar na primeira vez que vi, e a cada revisita vejo mais detalhes do roteiro de ouro de Peele. Entre tanta coisa genial, destaco um dos momentos mais incômodos para todos os protes que viram esse filme: a festa.
Todo preto que esteve em um “ambiente chique” cheio de gente branca sente o que Chris demonstrava por olhares — aliás, que trabalho interpretação incrível. Todas aquelas perguntas envolvendo todo o tipo de objetificação do corpo preto é muito recorrente, inclusive no meio que estamos inseridos — aquele que está no twitter, paga de alternativo e ouve podcast. E o filme faz questão de demonstrar isso em falas como “eu votaria no Obama de novo” e “Negro está na moda, não é?”
Aqui, vários pontos são debatidos, como a objetificação e sexualização do corpo negro, bem como a crença de que o preto só é competente nos esportes, e o pior, a suposta “moda”, como se fosse algo exótico, em que os brancos podem se “fantasiar” de negros gente preta — alô brancos com dreads!
No mesmo bloco do filme também temos mais um momento usado como brincadeira no cinema e que acontece na realidade: quando Chris encontra um preto na festa, ele se sente automaticamente mais confortável. Isso me lembrou, de cerca forma de uma cena do “Não é Mais um Besteirol Americano”, onde dois negros se encontram em uma dessas festas. Logo, um deles se desculpa e fala que vai embora, afinal, só pode ter um preto nesse tipo de filme.
Para finalizar, não posso esquecer da cena mais impactantes e metafórica do filme: quando Chris é hipnotizado. A hipnose, assim como a lobotomia, é a metáfora que Jordan Peele utilizou para discutir algo muito sério: para dominar uma pessoa ou grupo, é preciso fazê-lo acreditar em sua inferioridade. Então, ao longo de séculos foi construído uma ideologia perversa em que o negro foi colocado como inferior.
Como cinema, Peele decidiu brincar com ideia visual em que Chris estava em um plano que ele não é ouvido, vai se afastando e diminuindo. O “mundo real”, está em um portal que lembra muito uma tela de cinema. Nela, só aparecem brancos. Esse é o recado e a cena do olhar assustado do protagonista.
O filme é de 2017, mas pela forma em que a obra foi absorvida pelo público e crítica, é evidente que, em 2023, posso definir que Corra! logo logo se tornará um clássico cult do gênero terror, enquanto Nós possivelmente não — embora seja inegável que se trata obra a ser revisitada e prima por sua originalidade.
O olhar fixado, assustado e bastante expressivo de pessoas negras em filmes de terror, é muito mais que uma composição imagética, mas sim um grito denunciativo e um pedido de socorro feito por um dos melhores cineastas da atualidade.
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