Separar a arte do artista é um debate antigo. Mas nos últimos anos, esse papo deixou de ser conversa de roda de boteco ou fórum acadêmico e virou pauta urgente nas redes sociais, nos streamings, nos tapetes vermelhos e, claro, na vida real. Afinal, como continuar consumindo filmes, séries, músicas e livros quando os nomes por trás deles aparecem em escândalos de abuso, racismo, transfobia ou qualquer forma de violência?
Essa pergunta não tem resposta fácil. E talvez nunca tenha. Porque a gente cresceu aprendendo a idolatrar. Aprendemos a amar obras como se fossem sagradas. E, de repente, a realidade bate. Descobrimos que nossos ídolos falharam. Ou pior: foram violentos com pessoas como a gente, ou com pessoas que amamos. E aí? Continua assistindo? Cancela tudo? Finje que não viu?
Nos últimos tempos, a cultura pop foi tomada por essa dúvida. Casos envolvendo nomes como Johnny Depp, J.K. Rowling, Michael Jackson, Ezra Miller e tantos outros deixaram claro que não existe mais espaço para o “não quero me envolver”. Porque até o silêncio, hoje, é escolha.
E, nesse cenário, a tal ideia de “separar obra e autor” já não se sustenta com a mesma facilidade de antes.
Quando a gente cresce com a obra, mas o criador se revela um problema
É fácil dizer que tudo tem que ser cancelado… até o momento em que a obra atinge um lugar emocional na sua vida. Quem cresceu lendo Harry Potter viu os livros como refúgio, criou vínculos afetivos com personagens e mundos mágicos, e por muitos anos teve orgulho de se chamar de potterhead.
Mas quando J.K. Rowling passou a vocalizar discursos transfóbicos de forma aberta, uma ferida foi aberta. Não só nas pessoas trans que se sentiram diretamente atacadas, mas em toda uma geração que precisou olhar para a obra com outros olhos. Ainda é possível amar algo que foi criado por alguém que fere outras pessoas?
Nesse caso, a discussão é ainda mais complexa. Rowling não é só a autora dos livros. Ela é a criadora de um universo inteiro. E continua lucrando com cada novo produto licenciado. Ao consumir, você a financia. E muita gente, consciente disso, passou a buscar formas alternativas de manter o carinho pelos personagens sem apoiar a autora. Outros simplesmente se afastaram por completo.
Mas não dá pra negar: o amor antigo nunca some por completo. O que muda é a forma como ele é lembrado.

O peso do protagonismo e da visibilidade
Quando o artista é só parte do projeto, o dilema muda de figura. Johnny Depp, por exemplo, interpretou personagens icônicos e era idolatrado por milhões. Quando vieram as denúncias envolvendo Amber Heard, o julgamento foi midiático, polarizado e, acima de tudo, transformado em entretenimento.
As hashtags de apoio, os vídeos de edições dramáticas e até mesmo os memes criaram uma narrativa em que pouco importava a complexidade do caso. A opinião pública virou tribunal. O ator virou símbolo de resistência para uns e de impunidade para outros. E o público se dividiu: boicotar os filmes ou continuar assistindo sem culpa?

A mesma questão vale para casos como o de Ezra Miller, que protagonizou um dos maiores lançamentos de super-herói dos últimos anos enquanto acumulava acusações de agressão, sequestro e outros comportamentos violentos. A Warner seguiu com o filme, apostando na bilheteria. A resposta do público foi morna. A indústria passou pano. Mas a sensação geral foi de desconforto.
Afinal, onde está o limite? Até que ponto o talento compensa o comportamento destrutivo? E será que compensa?

O mito do gênio incompreendido e a cultura do perdão seletivo
Durante muito tempo, o artista problemático foi romantizado. O gênio torturado. O criador ousado demais para se encaixar. Essa visão, herdada de séculos de elitismo cultural, ainda vive forte no imaginário pop. Mas, na prática, ela só funciona para um certo tipo de artista.
Homens brancos ricos costumam ter mais espaço para errar. Para serem compreendidos. Para retornarem depois de escândalos com aplausos. Enquanto isso, artistas negros, LGBTQIA+, periféricos ou mulheres muitas vezes são cancelados ou esquecidos por erros muito menores — ou até por acusações sem prova.
É o que muitos chamam de cancelamento seletivo. E ele revela uma hipocrisia estrutural: o problema não é errar. O problema é quem pode errar e continuar no topo.
Se fosse uma mulher negra no lugar de Ezra Miller, será que o filme teria sido lançado? Se fosse um artista da quebrada acusado de agressão, será que haveria campanha de reabilitação da imagem? A resposta, na maioria das vezes, é não.
E quando é alguém da nossa bolha?
O debate fica ainda mais delicado quando o artista problemático é alguém da cena independente. Um roteirista cult, um cantor do circuito alternativo, um influenciador progressista. Alguém que parecia estar “do nosso lado”, mas que é exposto por atitudes violentas nos bastidores.
Nesses casos, o abalo é mais pessoal. E a separação entre obra e autor é praticamente impossível. A decepção é direta. E a cobrança por posicionamento também.
Talvez aí esteja a principal mudança dos tempos atuais: não existe mais espaço para fingir neutralidade. As escolhas de consumo são políticas. As redes sociais amplificam cada posicionamento. E o público está mais atento — e mais exigente.
Arte é espelho, e o artista, mesmo calado, está lá
No fundo, o motivo pelo qual essa discussão dói tanto é porque a arte toca lugares profundos. Ela nos molda, nos transforma, nos inspira. E quando descobrimos que aquela obra foi criada por alguém que não respeita quem somos, há uma quebra. Um deslocamento. Uma pergunta inevitável: e agora?
Separar arte de artista pode ser possível, em alguns casos. Mas isso não significa isenção. Toda obra carrega ideologias, mensagens, contextos. E ignorar isso é um privilégio que nem todo mundo tem.
O que é “apenas uma música” para uns, pode ser gatilho para outros. O que é “só um filme” para alguns, pode ser uma violência simbólica pra muitos.
Então talvez o mais honesto seja reconhecer a contradição. Assumir que, sim, já amamos artistas problemáticos. Que, sim, algumas obras fazem parte da nossa história pessoal. Mas que agora sabemos mais. E, sabendo, podemos escolher diferente.
Você não precisa cancelar tudo — mas precisa estar consciente
Esse texto não é um manifesto de cancelamento total. É um convite ao questionamento. Ninguém é obrigado a odiar o que um dia amou. Mas a gente também não precisa fingir que nada aconteceu. Porque fingir é permitir que os ciclos se repitam.
A grande virada talvez seja essa: parar de proteger artistas como se fossem deuses intocáveis. E começar a valorizar quem cria com respeito, com responsabilidade, com ética.
Não falta gente talentosa. Falta espaço pra quem faz diferente.
E aí sim, talvez a arte possa voltar a ser um lugar de segurança pra todo mundo.
As informações e opiniões formadas neste artigo são de responsabilidade única do autor. Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Conecta Geek.
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