Pirataria | Entre a ilegalidade e a preservação da memória e da cinefilia
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Pirataria | Entre a ilegalidade e a preservação da memória e da cinefilia

A pirataria de filmes é um tema que divide opiniões. Para muitos, é um crime que prejudica a indústria cinematográfica. Para outros, é uma ferramenta essencial para a democratização do acesso à cultura. Mas, além desses debates, há um aspecto pouco discutido: a pirataria como guardiã da memória do cinema. Em um mundo onde filmes podem desaparecer devido a questões de direitos autorais, falta de interesse comercial ou simples negligência, as redes informais de distribuição surgem como uma forma de preservar obras que, de outra forma, cairiam no esquecimento.

A história do cinema é repleta de exemplos de filmes que só sobreviveram graças à circulação informal. Clássicos esquecidos, obras independentes e produções de países periféricos muitas vezes encontram seu público — e sua sobrevivência — por meio de cópias piratas. E, em muitos casos, essa circulação não apenas preserva, mas também amplia o alcance dessas obras, criando novas gerações de fãs e cineastas inspirados.

Barry Jenkins e o caso de Moonlight

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Instagram/Reprodução

Durante uma visita ao México, o diretor Barry Jenkins fez uma descoberta inusitada: em uma banca de filmes piratas na pequena cidade de Muna, com pouco mais de 11 mil habitantes, ele encontrou uma cópia de “Moonlight: Sob A Luz do Luar”, filme que dirigiu e que venceu o Oscar de Melhor Filme em 2017. Jenkins compartilhou a experiência em sua conta do Instagram, destacando a surpresa ao ver sua obra em um local tão distante e inesperado.

Passei por um vendedor de filmes piratas em Muna, México, e vejam o que encontrei. Para entender completamente isso, você precisa saber que Muna é uma cidade pequena, no caminho para as ruínas de Uxmal. Paramos para comprar frutas em um mercado ao ar livre e, olhem só, meu filme. Mãe, nós somos famosos!”, escreveu.

O episódio ilustra o alcance global do cinema e como obras podem transcender fronteiras, mesmo por meio de canais informais.

Jenkins não está sozinho. Muitos cineastas reconhecem que o acesso informal a filmes foi fundamental para sua educação cinematográfica. Em países onde a distribuição de cinema é limitada, as redes de pirataria funcionam como uma espécie de cineclube global, permitindo que pessoas assistam a obras que, de outra forma, nunca teriam a chance de conhecer.

O fenômeno Tropa de Elite

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Polícia Civil do Rio de Janeiro/Divulgação

Outro caso que ilustra a complexidade da pirataria é o do filme brasileiro “Tropa de Elite” (2007), dirigido por José Padilha. Meses antes de sua estreia nos cinemas, uma cópia do filme vazou na internet e rapidamente se espalhou por redes de compartilhamento. Ao invés de prejudicar o lançamento, o vazamento gerou uma onda de interesse pelo filme, que se tornou um fenômeno cultural.

O sucesso de Tropa de Elite mostra que, em alguns casos, a pirataria pode funcionar como uma forma de marketing informal. O filme ganhou ainda mais visibilidade graças ao buzz gerado pelo vazamento. E, ao contrário do que se poderia esperar, o público que assistiu ao filme pirateado muitas vezes decidiu ir ao cinema para reviver a experiência em tela grande.

Tropa de Elite arrecadou R$ 20.422.567 no Brasil em 2007, sendo a sétima maior bilheteria do ano. Já “Tropa de Elite 2” foi o filme brasileiro com a maior bilheteria de todos os tempos na época de seu lançamento, arrecadando mais de R$ 100 milhões. 

BitTorrent e a cibercinefilia

As redes BitTorrent, em particular, desempenham um papel importante na preservação da memória do cinema. Essas redes são usadas não apenas para distribuir blockbusters, mas também para compartilhar filmes raros, obras independentes e produções de países com pouca representação no mercado global. Grupos de torrent cinéfilos, como o lendário MKO, dedicam-se a digitalizar e distribuir filmes que, de outra forma, estariam condenados ao esquecimento.

Esses grupos funcionam como verdadeiros arquivistas digitais, preservando obras que não têm espaço no mercado tradicional. E, ao fazer isso, eles ajudam a manter viva a diversidade do cinema, garantindo que filmes de diferentes épocas, países e estilos continuem acessíveis para novas gerações de espectadores.

A pirataria como ato de desobediência civil

Além de sua função preservacionista, a pirataria também pode ser vista como uma forma de desobediência civil. Numa realidade, sobretudo de países como o Brasil, onde o acesso à cultura é cada vez mais restrito por barreiras econômicas e geográficas, as redes informais surgem como uma resposta à exclusão. Para muitas pessoas, a pirataria é a única forma de acessar filmes que não são distribuídos em seu país ou que estão trancados atrás de paywalls caros.

Essa luta por acesso não é apenas uma questão de conveniência, mas também de justiça social. Em países periféricos, onde o custo de ingressos é proibitivo para grande parte da população, a pirataria se torna uma forma de resistência contra a elitização da cultura.

Enquanto a indústria audiovisual aponta a pirataria como uma grande ameaça, é difícil ignorar que o próprio mercado pode ser o maior incentivador dessa prática. Com preços elevados de ingressos e assinaturas de streaming, além de uma oferta restrita de filmes, muitos brasileiros encontram na pirataria a única forma de acesso à cultura. Dados da MUSO, empresa especializada em rastreamento de conteúdo, mostram que mais de 30 bilhões de acessos a sites piratas foram registrados em 2023, um aumento de 6,5% em relação ao ano anterior. No Brasil, onde a desigualdade econômica é gritante, a pirataria não é apenas uma escolha, mas muitas vezes uma necessidade.

Preços altos e oferta limitada

Após a pandemia de Covid-19 e a greve dos estúdios em Hollywood, os preços dos ingressos e das assinaturas de streaming dispararam. Um levantamento da Proteste, entidade de defesa do consumidor, revelou que os reajustes nas plataformas de streaming superaram a inflação em 14% desde 2021. Para muitas famílias, pagar R$50 em um ingresso de cinema ou o mesmo valor para pagar uma ou duas assinaturas de streaming simplesmente não cabe no orçamento.

Enquanto isso, a oferta de filmes nos cinemas brasileiros caiu 35% em relação aos níveis pré-pandemia, o que significa quase 200 filmes a menos por ano. Com menos opções e preços altos, não surpreende que muitos espectadores busquem alternativas ilegais.

O futuro da pirataria e da cinefilia

À medida que a tecnologia avança, a pirataria continua a evoluir. Plataformas de streaming, como Netflix e Prime Video, oferecem acesso conveniente a uma ampla variedade de filmes, mas ainda deixam lacunas. Muitas obras importantes não estão disponíveis nessas plataformas, e outras são removidas sem aviso prévio.

Nesse contexto, as redes informais de distribuição continuam a desempenhar um papel crucial. Elas não apenas preservam a memória do cinema, mas também desafiam a indústria a repensar suas práticas. Afinal, se as pessoas estão dispostas a correr riscos para assistir a determinados filmes, isso é um sinal de que há uma demanda não atendida.

A pirataria, portanto, não é apenas um problema a ser combatido, mas também um sintoma de um sistema que precisa ser repensado. Enquanto a indústria cinematográfica não encontrar formas de atender a essa demanda, as redes informais continuarão a existir — não como inimigas do cinema, mas como suas guardiãs.

Entre o ilegal e o legítimo

A pirataria é um fenômeno complexo, que não pode ser reduzido a uma simples questão de legalidade. Para muitos, ela é uma forma de preservar a memória do cinema, democratizar o acesso à cultura e desafiar as desigualdades do mercado. Enquanto a indústria não encontrar formas de atender a essas demandas, as redes informais continuarão a desempenhar um papel crucial na preservação e disseminação da arte.

A pirataria nos lembra que o cinema é mais do que uma mercadoria — é uma forma de arte que merece ser preservada, compartilhada e celebrada. Mesmo entre a linha tênue da ilegalidade, só assim a cultura deixa de ser um privilégio, surgindo como uma forma de garantir que o cinema continue vivo para todos.

As informações e opiniões formadas neste artigo são de responsabilidade única do autor. Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Conecta Geek.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.