Ratatouille e o papel da crítica cinema e da autocrítica entre os críticos
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Ratatouille e o papel da crítica de cinema e da autocrítica entre os críticos

Ao revisitar Ratatouille, me vejo desafiado a confrontar a minha própria prática crítica e as armadilhas que, muitas vezes, caímos ao avaliar uma obra. A história do rato Remy, que sonha em se tornar chef de cozinha, e sua jornada por um universo culinário aparentemente incompatível com sua natureza, serve como uma alegoria simples, mas poderosa para a crítica de arte, especialmente no campo cinematográfico. A reflexão que o filme oferece é profunda, mas, para ser honesto, também um tanto desconfortável para alguém que se ocupa de julgar e categorizar a arte.

Qual a função da crítica de cinema?

Mas antes de fazer uma autoanálise, é importante entender qual o papel da crítica dentro do campo artístico, e, nesse caso, na crítica de cinema. Pois bem, acredito que o principal ponto a ser destacado neste tópico é desmistificar algo que ficou muito popular, sobretudo, na internet: a crítica não é uma avaliação de filmes.

Assim sendo, ela desempenha um papel muito mais profundo e multifacetado dentro da cultura cinematográfica e da sociedade como um todo. Sua função vai além de informar se um filme é “bom” ou “ruim”, oferecendo ao público uma análise que se propõe a enriquecer a experiência cinematográfica e a estimular uma reflexão mais profunda sobre as obras, e isso é fundamental para a evolução da arte enquanto linguagem.

A crítica como ferramenta informativa

A função mais imediata e evidente da crítica de cinema é a informativa. O crítico serve como um guia para o espectador, apresentando um panorama do filme, descrevendo seus aspectos principais, como a trama, os personagens, a atuação, a direção e a fotografia.

Em um cenário saturado de lançamentos, essa função pode ser determinante para o público escolher o que assistir. A crítica, portanto, ajuda a clarificar o conteúdo e, em muitos casos, antecipa os temas e a abordagem de uma obra, proporcionando ao espectador uma visão prévia que pode facilitar sua decisão de assistir ao filme

A função interpretativa e reflexiva

Contudo, a crítica de cinema não se limita a uma simples descrição do filme. Ela tem uma função interpretativa, que busca ir além da superfície e explorar as camadas mais profundas da obra. Os críticos de cinema frequentemente analisam as temáticas abordadas pelo filme, seu contexto cultural, político e social, e os significados subjacentes presentes em suas imagens e diálogos. Em alguns casos, o crítico propõe uma leitura alternativa, desafiando a visão convencional e oferecendo ao público uma nova perspectiva sobre o filme.

Além disso, a crítica funciona como uma lente através da qual o espectador pode ser incentivado a questionar o que está assistindo. Ela atua como uma provocação intelectual, estimulando uma análise sobre questões sociais, políticas e existenciais abordadas nas obras. Nesse sentido, a crítica não se limita a consumir passivamente a obra, mas a envolver o público em uma reflexão contínua, ajudando a ampliar a compreensão do filme e de seus múltiplos significados.

Contextualização

Outro aspecto essencial da crítica de cinema é sua função de contextualização. Os críticos frequentemente colocam os filmes dentro de um cenário mais amplo, relacionando-os com outros trabalhos do diretor, com tendências do gênero, com movimentos cinematográficos ou com eventos históricos e culturais.

Dessa forma, a crítica ajuda o público a entender a relevância de uma obra dentro do panorama global do cinema e da sociedade em que foi criada. Isso pode enriquecer a experiência do espectador, que passa a perceber o filme não apenas como uma produção isolada, mas como parte de uma conversa maior dentro da história do cinema e da cultura.

Desafio ao público

Print de um vídeo do YouTube, com o título "Deixe O Cinema Morrer". No trecho, há um homem dentro de seu quarto, com um olhar melancólico/reflexivo/incomodado, olhando para a câmera.
X/Reprodução

A crítica de cinema também possui uma função desafiadora. Em vez de simplesmente afirmar se uma obra é boa ou ruim, a crítica convida o público a pensar criticamente sobre o que está assistindo.

Ela questiona as convenções do cinema, provoca debates sobre as escolhas narrativas e estéticas e estimula o espectador a ir além do entretenimento imediato. Ao fazer isso, a crítica ajuda a transformar o ato de assistir a um filme em uma experiência mais ativa e reflexiva, onde o público se envolve de forma mais profunda com a obra e com os temas que ela levanta.

A responsabilidade do crítico

Dentro desse contexto, a crítica de cinema também carrega uma grande responsabilidade. O crítico deve ser consciente de seu papel, pois suas análises podem influenciar a percepção pública de um filme, afetar seu sucesso nas bilheteiras e até mesmo sua posição no imaginário cultural.

A crítica precisa ser fundamentada, honesta e respeitosa com o trabalho dos cineastas, sem perder de vista a importância de oferecer uma visão crítica e bem fundamentada. O crítico não deve apenas emitir uma opinião pessoal, mas apresentar uma análise que ajude o espectador a compreender a obra de forma mais rica e aprofundada.

A crítica na era digital

Nos dias atuais, com a popularização das redes sociais e das plataformas de streaming, a crítica de cinema se democratizou. Opiniões sobre filmes são compartilhadas por milhões de pessoas ao redor do mundo, muitas vezes de maneira imediata e sem o mesmo nível de reflexão ou análise que caracteriza a crítica especializada.

Isso não diminui a importância da crítica profissional, mas traz uma nova dinâmica à forma como o público consome e interage com as opiniões sobre os filmes. A crítica se torna, assim, parte de uma discussão mais ampla, na qual o espectador comum tem tanto a voz quanto o poder de influenciar a recepção de um filme.

Entretanto, a crítica profissional segue sendo essencial, pois, ao contrário das reações imediatas das redes sociais, ela é baseada em um olhar mais atento, fundamentado e reflexivo sobre a obra. Aliás, para compor e ampliar esse debate é importante que diversos olhares e vivências ocupem espaços para esse tipo de reflexão. Seja no espaço online, curadoria de mostras e júri de grandes festivais.

Voltando ao tópico principal

Agora que tudo mundo consegue mensurar a importância e o papel da crítica, voltamos ao trabalho de autoanálise proposto por Ratatouille. Pois bem, o filme, assim como muitos outros utiliza um personagem para ser a personificação da crítica, que nesse caso é o personagem Anton Ego, que guardado aos exageros típicos de uma caricatura, ele ainda reflete muito em muitos de nós, críticos.

Ego é um crítico rígido, muitas vezes implacável, que prefere a grandiosidade dos pratos elaborados e respeitados à simplicidade e ao “insignificante”. No entanto, o filme faz uma virada impressionante ao mostrar que é justamente na simplicidade – e na autenticidade – que reside o verdadeiro valor.

Aqui, Ratatouille nos confronta com uma verdade um tanto incômoda: a crítica, em sua busca por validadores e normas, por vezes se perde na forma e negligencia à essência. Ego, inicialmente cético e distanciado, só reconhece o valor genuíno do prato simples preparado por Remy quando é capaz de abrir mão de seu preconceito e elitismo. Este é o momento em que o crítico se rende à experiência humana pura, livre de qualquer filtro de sofisticação ou hierarquia.

É preciso admitir: quantas vezes nos deixamos prender por nossa própria busca por “grandes filmes”, por obras que se ajustem aos padrões estabelecidos, que se alinhem com a crítica já feita ou que se adequem à expectativa do público e da indústria?

Ao longo da minha construção de repertório para chegar ao ponto de “me sentir crítico”, muitas vezes me vi preferindo filmes mais “complexos”, mais “inovadores” ou mais “profundos” de uma maneira que, em última instância, me afastava do que realmente importava.

Como Ego, eu, por vezes, busquei o grandioso e o sofisticado, esquecendo que a arte não está necessariamente na complexidade técnica ou na extravagância de sua execução. Em vez disso, Ratatouille me lembra que o verdadeiro valor pode estar naquilo que é simples, puro e genuíno. A crítica de cinema não deve ser uma busca pelo complexo ou pelo elaborado, mas pela capacidade da obra de comunicar, de tocar o espectador de maneira verdadeira.

Ratatouille e o papel da crítica cinema e da autocrítica entre os críticos
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Ego, como crítico, vive preso a um paradigma de excelência que restringe sua visão. Isso me faz pensar em como, frequentemente, nossa visão crítica é limitada não apenas pela nossa formação e experiência, mas também pelas expectativas culturais e sociais. A crítica de arte, em grande parte, ainda é uma prática que carrega consigo uma hierarquia de valores – um conceito elitista que muitas vezes marginaliza ou subestima certos tipos de expressão artística.

No filme, o personagem de Ego representa essa visão rígida, que classifica o valor de um prato (filme) com base no seu status, no nome do chef (cineasta), nas técnicas complexas empregadas. Essa é, em grande parte, a crítica tradicional, que só valoriza o que já está consagrado e reputado. E, como Ego, muitos de nós, críticos, somos culpados de não olhar para o que está além do nosso campo de visão habitual.

O ponto central aqui é a crítica como um ato de recepção e não apenas de julgamento. Ratatouille me desafia a reconsiderar o papel da crítica no cinema e nas artes. O filme nos ensina que o crítico deve se abrir à experiência, reconhecer a arte na sua forma mais simples e, muitas vezes, inesperada.

Remy, o rato, se vê como um artista genuíno, sem qualquer pretensão ou arrogância, o que torna sua arte ainda mais poderosa. Ele nos lembra que a verdadeira crítica está em perceber a alma de uma obra, não em catalogá-la ou medi-la contra um padrão preestabelecido.

Quando Ego, o crítico, experimenta o prato simples que Remy preparou, ele é transportado para uma lembrança de infância, algo pessoal e profundo. Esse momento de revelação é uma metáfora para a crítica que se afasta da lógica fria e se aproxima da experiência emocional, algo que se perde frequentemente em análises técnicas excessivas.

Por fim, Ratatouille não nos ensina apenas sobre a crítica, mas também sobre a evolução do próprio crítico. No final do filme, vemos Ego transformado, deixando para trás sua visão elitista e impositiva para abraçar a humildade e a sensibilidade àquilo que é autêntico.

Em vez de um crítico que apenas aponta falhas ou limitações, ele se torna alguém capaz de ver o valor nas coisas simples e genuínas. Isso reflete o que todos nós, como críticos, devemos buscar: uma capacidade maior de perceber o que é autêntico e original, independentemente da sua origem ou da sua complexidade.

Ratatouille oferece uma lição valiosa não apenas para chefs e cineastas, mas também para nós, críticos. A crítica deve ser sobre experiência, sobre compreender o valor das obras, seja qual for o seu tamanho, sua origem ou sua vivência. Ao afastar-se da visão elitista e rígida representada por Ego, o filme nos convida a olhar para a arte de uma forma mais sensível, mais aberta, mais humana. E como críticos, é esse o tipo de crítica que devemos buscar –reconhecer o valor em todas as suas formas, sem preconceitos e sem limitações autoimpostas.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.