Desde meu primeiro vislumbre de South of Midnight, fui imediatamente cativado por sua proposta artística única. Agora disponível para Xbox Series X|S, PC e Xbox Game Pass, o jogo marca o retorno da Compulsion Games com sua obra mais ambiciosa até hoje.
Sua proposta ousada e autoral mergulha fundo nas raízes do folclore do sul dos Estados Unidos. South of Midnight constrói um universo envolvente, repleto de magia ancestral, mitos regionais e tradições afro-americanas. A estética se destaca: uma mistura vibrante de técnicas de stop motion com visuais que parecem pintados à mão.
Uma aventura sob o véu do mítico
Acompanhamos a jornada de Hazel, uma adolescente que conquista o jogador logo de início. Ela não se encaixa no molde da protagonista infalível. Pelo contrário, Hazel é teimosa, impulsiva, sensível e cheia de conflitos internos. Justamente por isso, ela se torna mais real, mais humana.
A busca desesperada pela mãe, Lacey, movimenta o coração da trama. Quando uma tempestade sobrenatural a separa de casa, Hazel se vê obrigada a recorrer à avó, Bunny, uma figura ríspida e pouco acolhedora, que parece indiferente à tragédia que se abateu sobre elas.

É nesse momento que Hazel descobre algo que muda tudo: ela é uma tecelã, uma espécie de feiticeira capaz de manipular a realidade por meio das “linhas” e “nós” da chamada “Grande Tapeçaria“. Assim, sua jornada deixa de ser apenas física, torna-se também espiritual, emocional e metafísica.
A história trágica de dois irmãos
Durante minha jornada, cruzei com muitas histórias tocantes. No entanto, nenhuma me marcou tanto quanto a dos irmãos Benjy e Ruibarbo. A tragédia deles é profunda, enraizada em laços de sangue, amor quebrado e culpa persistente como névoa nos pântanos.
Benjy, um garoto gentil e com deficiência, irradiava luz e pureza. Já Ruibarbo, seu irmão mais velho, inicialmente o protegia com devoção. Contudo, com o tempo, o peso da responsabilidade, ou talvez a própria escuridão do pântano, começou a consumir sua alma.
O que antes era proteção se transformou em prisão. Em um momento de desespero, ou talvez de covardia irreparável, Ruibarbo prendeu Benjy dentro de um velho toco de árvore, abandonando-o à própria sorte. Sozinho e esquecido, Benjy se fundiu à madeira, transformando-se em uma árvore viva, curvada pela mágoa.

Nesse ponto, South of Midnight deixa de apenas deslumbrar com sua beleza visual e mergulha fundo na escuridão do coração humano. No desfecho da história, Hazel sobe pelos galhos de Benjy em um gesto de empatia para aliviar seu sofrimento. A cena é embalada por uma canção folk suave, que surge como um sussurro acolhedor, adicionando camadas de sensibilidade e beleza ao momento.
A música, sutil e emocional, acentua a atmosfera de redenção e encerramento, tornando o final ainda mais tocante. E eu, como jogador, fui tomado por uma tristeza doce, como um lamento antigo ecoando pelas águas do pântano.
Um universo de histórias que tocam a alma
Ao longo da aventura, Hazel encontra aliados fundamentais. Mahalia, um espírito misterioso, guia seus primeiros passos como tecelã. Já Bagre, uma criatura mística e bem-humorada dos pântanos, a ajuda a compreender melhor os segredos da Tapeçaria e compartilha histórias marcantes do Bayou.

Essas histórias são, aliás, parte essencial do charme do jogo. As narrativas secundárias se entrelaçam organicamente com o arco principal. Além da história dos irmãos, acompanhamos a trajetória de Joselene e seu pai, marcados por um passado doloroso ligado a Tom Dois-Dedos, uma figura lendária de fome insaciável.
Conhecemos também Laurent, um homem isolado nas florestas de Próspero, assombrado por traumas do passado, e Sarninha, que guarda um segredo sombrio envolvendo o desaparecimento de crianças. A trama eventualmente nos leva até Molly Abraço-Apertado, uma antagonista que encarna a lenda local do medo e da manipulação emocional.

Cada história é rica em simbolismo e moralidade, levando o jogador a refletir sobre decisões, arrependimentos e consequências. Mesmo com uma estrutura narrativa relativamente simples, South of Midnight encanta pela profundidade emocional e pelo respeito com que trata o tempo e o desenvolvimento de cada personagem.
Uma jornada de sentimentos
South of Midnight é um exemplo brilhante de como a arte pode amplificar emoções. Seu estilo visual em stop motion, com personagens que parecem moldados à mão em argila, cria uma estética única e inesquecível.
Além disso, os cenários, de pântanos lúgubres a mansões decadentes, reforçam o tom melancólico e mágico da obra. A trilha sonora, composta por Olivier Derivière (A Plague Tale: Innocence, Vampyr, Remember Me), é fenomenal. Suas composições guiam emocionalmente o jogador, variando entre o tenso, o místico e o melancólico.
Durante chefes como Tom Dois-Dedos, Rougarou e Molly Abraço-Apertado, as músicas, muitas com letras carregadas de simbolismo, elevam a tensão e a dramaticidade dos confrontos. Nessas lutas, senti uma mistura de euforia, medo, expectativa e até respeito solene pelas criaturas. Afinal, elas também são vítimas de suas próprias histórias.


Tom Dois-Dedos representa um ciclo de dor. Rougarou traz à tona temas de transformação, violência e punição. Já Molly é o reflexo distorcido do amor materno e do trauma. Esses embates não são apenas físicos, mas simbólicos e emocionais.
O combate vibrante de South of Midnight
O combate em South of Midnight é simples em sua essência, mas entrega uma experiência extremamente divertida e repleta de ação do início ao fim. O sistema de batalhas não depende de mecânicas excessivamente complexas, o que torna o jogo acessível, porém ainda assim empolgante.
Hazel precisa estar em constante movimento, esquivando e reagindo com agilidade, já que os inimigos atacam de maneira imprevisível e em grande número. Essa dinâmica cria um ritmo acelerado, que mantinha sempre atento a tudo que estava acontecendo na batalha.
Além disso, a fluidez dos controles permite que o combate seja instintivo e recompensador, incentivando experimentações de combos mesmo dentro de sua simplicidade.
Por outro lado, os confrontos contra chefes elevam o nível da experiência, oferecendo batalhas memoráveis que exigem atenção total e domínio das habilidades adquiridas ao longo da jornada. Cada chefe possui padrões únicos e mecânicas próprias, o que garante variedade e um senso de progressão significativo.
A trilha sonora, cuidadosamente composta, intensifica cada momento de tensão e vitória, ampliando a imersão e tornando cada embate ainda mais marcante. Um destaque pessoal vai para a música da batalha contra Molly Abraço-Apertado, envolvente, intensa e, acima de tudo, viciante.
A composição não apenas acompanha o ritmo do confronto, mas também o potencializa, tornando impossível não se deixar levar pelo clima da luta. No entanto, um ponto crítico precisa ser destacado: as músicas não receberam tradução ou legendas localizadas para o nosso idioma.
Essa ausência impacta diretamente a experiência de jogadores que não possuem domínio do inglês. Boa parte da carga narrativa e do subtexto emocional pode se perder completamente, resultando em uma vivência menos rica e imersiva.
Design linear, mas recompensador
O level design é bem estruturado. Apesar da progressão linear, o jogo oferece áreas opcionais repletas de pequenos segredos: arquivos que aprofundam a história da região, ou Felpos, que servem para aprimorar as habilidades de Hazel.
Cada canto conta uma história seja por elementos visuais, diálogos escondidos ou vestígios do passado. A Compulsion Games merece elogios pela atenção aos detalhes em cada ambiente, meticulosamente construído para refletir o clima e os temas do momento. A trilha sonora e o design sonoro reforçam essas atmosferas com maestria, promovendo imersão total na jornada de Hazel.

No entanto, o ponto mais marcante de South of Midnight é sua representação cultural. O jogo abraça o folclore, a música e os mitos afro-americanos do Deep South com carinho, respeito e autenticidade. Nada ali é um adorno, tudo pulsa com identidade e alma. Desde o vocabulário dos personagens até os contos adaptados à Tapeçaria mágica, o mundo do jogo respira cultura viva.
Problemas técnicos
Durante a gameplay, encontrei dois pequenos bugs. Em um deles, Hazel ficou presa ao escalar uma parede, felizmente, o problema se resolveu após alguns segundos. No outro, ao derrotar um inimigo, a luta permaneceu ativa, impedindo meu progresso. Foi necessário reiniciar o jogo e recarregar o save.
Apesar disso, a performance geral é sólida. As quedas de FPS são raras, mesmo em momentos visualmente intensos. Esses são problemas pontuais, que não comprometem a experiência como um todo, mas merecem atenção em futuras atualizações.
Considerações finais: South of Midnight vale a pena?
Eu estava ansioso por South of Midnight, e posso dizer sem hesitação: este é um dos grandes acertos do Xbox nos últimos anos. O jogo impressiona visualmente, com uma direção de arte ousada que mistura o gótico sulista com folclore afro-americano de forma raramente explorada na indústria.
Cada cena se parece com uma pintura viva, estilizada e cheia de personalidade. Narrativamente, o jogo conquista por sua abordagem sensível, humana e emocional. Explora temas como luto, identidade, legado e pertencimento com delicadeza, através da jornada de Hazel, uma protagonista forte, real, imperfeita e encantadora.
Suas inseguranças e sua coragem, somadas à relação que constrói com o mundo, despertam empatia em níveis raros nos games.
South of Midnight me lembrou por que eu amo videogames: porque eles têm o poder de contar histórias que tocam, questionam e permanecem conosco muito tempo depois de desligarmos o console. Foi, para mim, uma experiência intensa, bonita e inesquecível.
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