The Last of Us | O acerto de contas
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The Last of Us | O acerto de contas

Há histórias que não começam no início, mas no fim. O último suspiro de Joel (Pedro Pascal) em The Last of Us não é apenas uma morte — é um portal para um labirinto de espelhos, onde cada reflexo distorcido revela uma nova camada de dor. A crueza de seu assassinato, executado por Abby (Kaitlyn Dever) em uma cabana isolada, não se resume à violência física. Esse acerto de contas vem carregado de simbolismo: um golpe de taco de golfe reativa um ciclo de vingança que parece tão inevitável quanto a infestação de cordyceps. O segundo episódio da 2ª temporada da série tece uma crítica sobre como o passado — seja na forma de traumas, culpas ou promessas quebradas — é um parasita que consome o presente.

Não sou o redator que cobre semanalmente The Last of Us aqui. Caí nessa missão quase por acaso, num rodízio editorial ou, talvez, numa daquelas decisões que parecem pequenas, mas que te colocam no olho de uma tempestade. E admito também, com a mesma honestidade: nunca fui grande fã de adaptações que seguem à risca suas obras originais. Pessoalmente, acredito que esse tipo de fidelidade costuma soar como… preguiça. Pois bem, em determinados momentos isso acontece aqui, mas, felizmente, há mudanças significativas para permitir uma reflexão sobre a série.

O episódio começa de forma quase provocativa ao deslocar o foco. Em vez de nos reencontrarmos com Joel ou Ellie, o roteiro nos apresenta Abby — não como vilã, mas como sobrevivente de um trauma ainda não completamente revelado, sonhando com a imagem do pai morto por Joel anos antes. É nessa decisão de estrutura que o roteiro começa a mostrar sua maturidade. Não se trata mais apenas de bem contra o mal, ou de vítimas e algozes. A série quer falar de legado, memória, e o que fazemos com a dor herdada dos outros. Ao abrir espaço para Abby, o roteiro também escancara uma provocação: você pode até não gostar dela, mas vai ter que entendê-la.

Visualmente, o episódio opera num contraste frio e calculado. A direção de arte aposta em cores dessaturadas e cenários cobertos por neve que escondem perigos quase invisíveis. A paisagem parece congelada no tempo, como se o mundo estivesse preso no momento anterior ao caos. O uso de luz natural intensifica essa sensação. Há uma certa beleza melancólica no modo como a câmera se detém sobre rostos exaustos e ambientes devastados. O realismo é sufocante, e é nesse sufoco que as emoções ganham mais peso. A fotografia trabalha em planos fechados, claustrofóbicos, especialmente nos momentos em que Joel e Abby dividem a cena, como se o enquadramento quisesse nos impedir de fugir do inevitável.

A construção sonora, por sua vez, é quase imperceptível — o que, paradoxalmente, a torna essencial. Os momentos de silêncio não são apenas ausência de som: são pausas carregadas de tensão, expectativa e, depois, luto. A trilha original quase desaparece, cedendo espaço ao ruído do ambiente e ao som das respirações — ou da sua falta. Quando Abby golpeia Joel pela última vez, o silêncio que se instala parece durar uma eternidade. É uma decisão de direção cirúrgica. A morte de Joel não é gloriosa. Não é cinematográfica. É crua, dolorosa e longa. Longa demais. Justamente para que ninguém se sinta confortável.

Mas antes da queda, há uma calmaria forjada em rotinas e pequenas tensões. Jackson aparece como um refúgio organizado, com sua própria política interna, suas brigas de salão, seus plantões e preocupações cotidianas. A relação entre Ellie (Bella Ramsey) e Jesse (Young Mazino) é uma dessas pequenas âncoras de normalidade. Há humor, ironia, e até um pouco de leveza — como o momento em que Ellie debocha da possibilidade de mil infectados atacarem a cidade. É um dos raros respiros do episódio, e que funciona justamente porque sabemos, lá no fundo, que a tragédia já está a caminho.

E ela vem, como prometido, com um plano que já nasce meio torto. Abby e os jovens sobreviventes — ou, como ela os vê, seus cúmplices — planejam entrar em Jackson para encontrar Joel. Eles não querem machucar ninguém além dele. É um pacto moral frágil, sustentado mais por desejo do que por convicção. Owen (Spencer Lord), especialmente, carrega no olhar a dúvida que mais tarde vai se transformar em horror. E é aí que a série acerta mais uma vez: ninguém ali é monstruoso por completo, mas todos estão dispostos a atravessar uma linha, desde que convençam a si mesmos de que é “por uma boa causa”.

Voltando a cabana, somos obrigados a confrontar um tipo de vingança que não é espetacular, mas íntima. Abby não quer só matar Joel. Ela quer que ele saiba por quê. Quer que ele sinta o peso daquilo que fez. Embora o texto não seja dos melhores, o destaque fica para a excelente Kaitlyn Dever que, mesmo sofrendo alguns ataques porque visualmente não tem o mesmo porte físico da Abby do jogo, nessa cena ela apresenta mais camadas, quase como se tivesse sentindo prazer em torturar o homem que matou seu pai.

Aliás, é aqui que entra um ponto que sempre me incomodou em adaptações excessivamente fiéis, como a da série em relação ao segundo jogo da franquia. Há tanto potencial não explorado nas entrelinhas do material original. Tantas vozes laterais que poderiam contar essa história de outro jeito. O universo é rico, denso, cheio de falhas humanas. E ainda assim, seguimos à risca um caminho já conhecido por quem jogou. Isso tira parte da surpresa e, pior, do frescor. Por outro lado — e talvez seja esse o paradoxo que me faça continuar assistindo.

A invasão de infectados de Jackson, causada indiretamente por Abby, é uma mudança drástica em comparação ao jogo. Em termos narrativos essas cenas grandiosas de ação são interessantes para constrastar uma Jackson que luta para resistir, enquanto Joel, um de seus líderes, sequer teve a chance de lutar para sobreviver.

Alguns podem até não terem se surpreendido pelo que Abby fez, mas talvez, muitos de vocês acabaram sentindo mais a morte de um assassino, do que pela destruição de uma comunidade harmônica nesse universo hostil. Esse é um ponto interessante, evidenciando o potencial desse material quando algo sai um pouco da burocracia que é essa série.

Quando Ellie chega tarde demais, e grita entre lágrimas que todos ali vão morrer, não é uma promessa de vingança. É uma sentença emocional. É o ponto de ruptura de uma personagem que até então se equilibrava entre a raiva adolescente e a esperança forjada na relação com Joel. Agora, ela está sozinha. O impacto é intensificado pela montagem, que intercala o massacre silencioso na cabanas com a movimentação tática em Jackson. A cidade resiste, mas sua alma — representada por Joel — está sendo esvaziada a quilômetros dali.

O episódio não tem pressa em nos mostrar as consequências. A câmera permanece com Ellie por longos segundos, observando sua tentativa de juntar os cacos de um momento que não pode ser consertado. A dor é silenciosa, sem trilha, sem gritos. Apenas ela e o corpo de Joel, cuja morte é também simbólica: representa o fim de um ciclo, de uma crença, de uma promessa de futuro. Mas também marca um começo, o da derrocada emocional de Ellie.

E assim voltamos ao início. Quando falei lá em cima que adaptações excessivamente fiéis me incomodam, talvez eu devesse ter dito que o que me incomoda, na verdade, é quando elas deixam de ver o potencial de serem mais do que uma repetição. E The Last of Us, mesmo com fatores externos — como a base fiel de fãs de uma das franquias mais queridas da últimas duas décadas — pode fazer um meio-termo possível. Uma zona em que a fidelidade se torna subversão, e o já esperado se transforma em novo pela forma como é contado.

Joel morreu. E isso muda tudo. Mas o que realmente transforma a série é a maneira como esse vazio é tratado: sem pressa, sem melodrama, sem moralismo. Apenas com dor. Uma dor que não grita — ecoa.

E agora, resta saber: o que Ellie fará com esse eco?

The Last of Us retorna no próximo domingo (27), às 22h, no canal HBO e na Max. Seguiremos acompanhando semanalmente cada episódio da nova temporada, então fique ligado!

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.