Trilogia X | Como Mia Goth descontrói a lógica da final girl

Trilogia X | Como Mia Goth descontrói a lógica da final girl

O que há por trás dos tropos do gênero?

O termo “final girl” não é tão popularizado no Brasil, no entanto, qualquer fã de terror está bem familiarizado com o seu conceito, que se refere à última garota sobrevivente de um filme. Cunhado em 1992 pela acadêmica Carol J. Clover, o termo é analisado de diversas maneiras e tem interpretações variadas, que podem entender a sua existência como produto de um pensamento moralista ou sexista, ou podem relacioná-lo ao feminismo.

Fato é que as regras para a final girl mudaram muito com o tempo, e talvez o que era mais associado com comportamentos puritanos — a última sobrevivente era geralmente a garota virgem — hoje em dia está muito mais ligado à força e espírito sobrevivente.

Com o lançamento de “X – A Marca da Morte”, em 2022, o diretor Ti West não só mudou essa regra, colocando Maxine (interpretada por Mia Goth), uma atriz pornô, como a final girl do longa, mas também perverteu a personagem Lorraine (Jenna Ortega), que no primeiro ato do longa apresentava todas as características de uma final girl clássica — até ela gravar uma cena de um filme adulto.

Trilogia X | Como Mia Goth descontrói a lógica da final girl
Jenna Ortega em X – A Marca da Morte (Reprodução/A24)

Evidentemente, Ti West não foi o primeiro a quebrar a regra da final girl, mas é evidente o poder de influência da derrubada do tropo com o crescimento da trilogia, sobretudo após o sucesso viral de “Pearl”, que, embora seja um filme de origem da vilã de A Marca da Morte, transformou Mia Goth num novo paradigma das final girls.

O moralismo por trás do conceito

O cinema de terror dos Estados Unidos (EUA) tem longa história, porém, talvez seu subgênero mais conhecido seja o slasher. Esse gênero ficou famoso principalmente nos anos 1980, com franquias que têm continuações até hoje, como “Sexta-feira 13” e “A Hora do Pesadelo”. A relação entre esse grupo de filmes e alguns aspectos socioculturais e históricos pode ser relevante para situar a discussão que aqui se propõe. Os anos 1960 e 1970 foram o momento de movimentos de contracultura – como o hippie e o punk, por exemplo – que modificaram a relação de poder dentro das famílias estadunidenses, promovendo maior protagonismo do adolescente na sociedade.

Nos anos 1980, esta mudança deslocou a produção de conteúdos de entretenimento, com especial enfoque no cinema e na televisão, para uma produção orientada aos públicos infantil e adolescente. Com o cinema slasher não foi diferente: ainda que explorando violência explícita, geralmente protagonizada por vilões mascarados, esses filmes se caracterizam pela exploração do universo adolescente, principalmente no que toca às descobertas sexuais.

O trabalho parte do pressuposto de que filmes slashers possuem elementos da moral cristã, principalmente no que toca à culpa e a punição pelos pecados relativos à sexualidade. E por mais que estejamos em 2024,  a virgindade ainda é um tema polêmico, haja vista a existência de clínicas para pessoas que desejam reconstituir o hímen, certificados que precisam ser entregues aos maridos por noivas mulçumanas antes de se tornarem esposas, numa discussão que envolve fetiche masculino, apego aos ritos de passagens tradicionalistas, dentre outros.

O hímen é o talismã de uma final girl

No livro “História da Virgindade”, de Yvonne Knibiehler, a autora filosofa sobre as religiões monoteístas, flertando com o ponto de vista dos judeus sobre a legitimidade da prole diante da virgindade como honra, dando ainda destaque aos hebreus e a dominação masculina, bem como uma reflexão sobre Joana D’Arc, Agnes e Maria, a “mãe do filho de Deus”.

Ela também pontua a visão da menstruação como impureza, a gravidez sucessiva como um item básico da cartilha cotidiana feminina, além da ascensão da virgindade como determinação com o advento do cristianismo. O véu e os votos, símbolos imaculados de status, abrem a terceira parte do livro, um capítulo interessante que também retrata as mulheres violadas como figuras que se transformavam em seres marginalizados socialmente, nada diferente do que temos na contemporaneidade.

Dentro do viés religioso ser vítima de violação era uma desonra, numa época de avanços da medicina com a descoberta do hímen, período da história que preconizava a educação virginal, o matrimônio e a vigilância social.. Ainda neste capítulo, a autora versa sobre a virgindade no século XIX, era do declínio para algumas vocações religiosas, além de abordar o contexto da Primeira Guerra Mundial, momento de intensas alterações comportamentais, acentuadas com o advento da psicanálise, numa fase de busca por compreensão da diversidade dos desejos e da sexualidade humanas, passando ainda pela Segunda Guerra Mundial, era do crescimento do contingente de mulheres médicas, ampliação das pesquisas sobre sexualidade e métodos contraceptivos. Na literatura e no cinema, o sexo era um tema cada vez mais explorado.

Voltando ao cinema…

O tema é debatido em “Pânico 4”, lá em 2011, filme dirigido e escrito por Wes Craven e Kevin Williamson, respectivamente. Nessa cena, da série de filmes marcados por brincar com os conceitos do gênero, acontece uma divertida discussão quando o tema é a virgindade. Segundo dois cinéfilos inveterados de um clube de cinema da instituição onde estudam, as virgens, diferente dos filmes da década de 1980, agora podem morrer impiedosamente pelas mãos de Ghostface. Lá em 1996, no primeiro filme da franquia, o tabu da virgindade é parodiado pelos realizadores com a sobrevivência de Sidney Prescott, a heroína da narrativa, figura ficcional que perde o seu manto no terceiro ato para um dos responsáveis pela onda de assassinatos.

Apesar de não ter sido em sua totalidade, a maioria das narrativas deste segmento condenava as garotas sexualmente ativas, encaminhadas para a morte, num contexto onde só havia espaço para sobrevivência aos comportados, moralmente capazes de derrotar o monstro, ao menos na história em que se encontravam, passando o bastão para outra final girl “certinha” na inevitável continuação.

MaXXXine

Trilogia X | Como Mia Goth descontrói a lógica da final girl
Mia Goth, em MaXXXine (Reprodução/A24)

Diante de tudo levantado até aqui, o terceiro filme da trilogia protagonizado por Goth quebra algumas expectativas, uma vez que Maxine caminhava para seguir os passos da maluca da Pearl, mas, ela segue sendo novamente uma final girl. Embora o trauma tenha quebrado a personagem e há até vislumbres do que ela poderia ser – sim, estou falando DAQUELA cena do beco – o horror em MaXXXine, bem como em toda a trilogia, como já citamos em nossa crítica é o puritanismo e para ser justo, isso está explícito desde a última cena cena de A Marca da Morte, quando descobrimos que o pastor pregando é o pai de Maxine e ela é o demônio dele.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.