49ª Mostra | A Incrível Eleanor; As Desvirtuosas; Jay Kelly
Colagem: Conecta Geek

49ª Mostra | A Incrível Eleanor; As Desvirtuosas; Jay Kelly

Na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, eu me joguei em três mundos que, à primeira vista, parecem não ter nada a ver entre si – mas finjam que faz sentido: A Incrível Eleanor, estreia de Scarlett Johansson na direção, mergulha na dor e na manipulação emocional do luto com uma suavidade quase irritante; As Desvirtuosas, de Chloé Aichä Leterrier Boro, acompanha o choque geracional entre avó e neta em Burkina Faso, misturando guerra civil, tradições sufocantes e busca de identidade feminina; e Jay Kelly, de Noah Baumbach, tenta transformar a crise existencial de um astro milionário em poesia visual, mas acaba com um catálogo de vaidade.

Curiosamente, os dois filmes que me deixaram mais frustrado – Eleanor e Jay Kelly – compartilham uma fragilidade: tentam nos comover com histórias morais e reflexões pesadas, mas se apoiam demais na estética e na manipulação sentimental, deixando o público mais constrangido do que tocado. Entre eles, As Desvirtuosas surge como a peça de resistência que precisava estar ali, mostrando que, mesmo com falhas técnicas e ritmo irregular, é possível trabalhar camadas de conflito cultural e emocional de forma genuína, sem recorrer a atalhos previsíveis.

A Incrível Eleanor

Mais uma básica dramédia sobre o luto que você sabe como termina logo quando começa. A Incrível Eleanor, estreia de Scarlett Johansson na direção, é um filme que tenta abraçar temas pesados – o luto, a solidão e até o trauma histórico do Holocausto –, mas o faz com a delicadeza de uma marretada. Johansson parece ansiosa para ser levada a sério como cineasta, mas escolhe o caminho mais seguro possível, o da manipulação emocional embalada em luz quente, música doce e frases prontas sobre empatia e perdão.

49ª Mostra | A Incrível Eleanor; As Desvirtuosas; Jay Kelly
Divulgação

A trama acompanha Eleanor, interpretada pela sempre encantadora June Squibb, uma senhora viúva que, após perder sua melhor amiga – uma sobrevivente do Holocausto –, decide contar as histórias da falecida como se fossem suas. Essa apropriação, que poderia render uma reflexão profunda sobre memória e culpa, é tratada com uma leveza quase ofensiva. O roteiro de Tory Kamen tenta justificar a mentira como um sintoma do luto, transformando um ato moralmente reprovável em uma “travessura de coração partido”. Quando o conflito ético aparece, o filme já está mais interessado em arrancar lágrimas do público do que em provocar qualquer desconforto real.

June Squibb, porém, faz milagre. A atriz injeta humanidade onde o texto falha, construindo uma Eleanor espirituosa e carismática, mesmo quando suas ações nos causam repulsa. Seu talento ajuda a mascarar o vazio emocional de uma narrativa que confunde empatia com condescendência. Erin Kellyman também se destaca como a jovem jornalista que tenta se aproximar de Eleanor, representando uma juventude que busca sentido nas histórias dos outros – ainda que o filme, ironicamente, pareça não entender nem os jovens nem os idosos de verdade.

O filme é incrivelmente polido, mesmo tão impessoal. A fotografia aposta em tons quentes e confortáveis, como se cada plano quisesse transformar o absurdo da trama em algo “bonitinho”. A trilha sonora, previsível, insiste em nos dizer o que sentir, enquanto a montagem tropeça em saltos de continuidade abruptos que enfraquecem o ritmo. Há boas intenções, claro, mas falta ousadia para encarar a dor sem o filtro do sentimentalismo.

A Incrível Eleanor tenta nos convencer de que, apesar de tudo, a protagonista só queria ser amada. E talvez quisesse. Mas quando uma história sobre falsidade, apropriação e culpa termina com aplausos e sorrisos, o que fica não é consolo – é um incômodo abafado, como quem percebe que foi manipulado, mas já é tarde demais para reagir.

As Desvirtuosas

49ª Mostra | A Incrível Eleanor; As Desvirtuosas; Jay Kelly
Divulgação

Um choque geracional entre duas mulheres fortes que nunca tiveram a liberdade para seguir seus caminhos, As Desvirtuosas se debruça sobre a vida de Natie e sua avó Awa em meio à guerra civil e ao conservadorismo rígido de Burkina Faso. O filme tenta equilibrar o drama familiar com questões políticas e sociais complexas, mas nem sempre consegue dar profundidade a todos os elementos que introduz. A história da avó, que há décadas renunciou ao amor e aos próprios desejos, é contada com sensibilidade e certo charme melancólico; já a protagonista, Natie, surge como uma figura mais difusa, cujas questões de identidade e autodefinição são apenas sugeridas, deixando o espectador com a sensação de que muito ficou por explorar.

A narrativa alterna momentos leves, quase divertidos, com passagens carregadas de tensão, mas o ritmo lento e os extensos silêncios acabam prejudicando a fluidez. Tecnicamente, a ausência de uma trilha sonora consistente contribui para essa sensação de vácuo, pois não há uma ponte emocional que guie o público entre as cenas de introspecção e os episódios de maior dramaticidade. Algumas escolhas de direção de Chloé Aichä Leterrier Boro, especialmente no tratamento do espaço e da fotografia, demonstram criatividade e inventividade diante de recursos limitados, mas a montagem às vezes é brusca, com cortes que interrompem o fluxo natural da narrativa e diminuem o impacto de determinados momentos emocionais.

O filme levanta reflexões interessantes sobre a misoginia estrutural e o papel das mulheres em sociedades profundamente conservadoras. As restrições impostas a Natie e Awa, seja pelo casamento arranjado da avó ou pela expectativa de silêncio e obediência na vida da neta, são exploradas de maneira convincente, mostrando o peso da tradição e da religião na vida das personagens. O romance proibido que ressurge na velhice de Awa funciona como um contraponto inspirador e traz um frescor inesperado ao filme, proporcionando cenas que emocionam e surpreendem, ainda que o desfecho de alguns personagens menores pareça de mau gosto ou excessivamente dramático, como se a diretora quisesse chocar em vez de refletir.

As atuações são um ponto alto, especialmente da intérprete de Awa, que imprime à personagem uma dignidade cativante e uma energia que contrasta com a fragilidade de sua situação. Natie, embora menos desenvolvida, também revela potencial, principalmente nos momentos em que sua determinação e curiosidade pela vida se sobrepõem à opressão familiar. As Desvirtuosas é um filme que impressiona mais pela intenção e pelo contexto em que foi realizado do que pelo domínio técnico, e deixa no espectador a marca de uma história que poderia ter sido ainda mais poderosa se todas as camadas tivessem sido exploradas com a mesma atenção.

Jay Kelly

49ª Mostra | A Incrível Eleanor; As Desvirtuosas; Jay Kelly
Netflix/Divulgação

Vamos fingir que nos importamos com a crise existencial de uma estrela de Hollywood milionária – e é justamente esse o desafio (ou o erro) de Jay Kelly, o novo filme de Noah Baumbach. A premissa até parece promissora: um ator famoso, interpretado por George Clooney, viaja a um festival de cinema na Itália para receber um prêmio de carreira e, no processo, mergulha em lembranças e arrependimentos. O problema é que o que deveria ser um retrato melancólico sobre o vazio do sucesso vira uma colagem açucarada de autocomiseração.

Baumbach, aqui se perde em uma estética que tenta ser Fellini, mas termina mais próxima de um comercial de perfume. As imagens em tons dourados e a trilha suave até prometem introspecção, mas logo se revelam uma cortina de fumaça para esconder um roteiro inchado e previsível. Cada flashback de Kelly soa como uma lição de moral: ele traiu amigos, decepcionou a família, perdeu o sentido da fama. Tudo isso embalado em frases prontas sobre arte, amor e arrependimento, como se Baumbach tivesse decidido transformar a crise de meia-idade em um pôster motivacional de luxo.

Tecnicamente, o filme é bonito – bonito até demais. A fotografia emula o esplendor ensolarado da Toscana com uma precisão quase publicitária. A câmera parece enamorada de Clooney, mas o olhar apaixonado do diretor esvazia o personagem. O que era para ser vulnerabilidade vira vaidade. Clooney, sempre carismático, tenta dar humanidade ao protagonista, mas é difícil sentir empatia por um homem cuja dor se manifesta entre vinhos caros e paisagens de cartão-postal. Quando ele embarca em um trem “para reencontrar a filha e o povo comum”, o tom é tão artificial que a cena poderia ter saído de uma paródia.

A montagem alterna memórias, devaneios e piadas deslocadas – e nenhuma dessas camadas se conecta. Há ecos de “8½”, mas sem a acidez ou o humor que davam vida a essas referências. Tudo aqui é excessivamente polido, incapaz de abraçar o ridículo que o próprio tema pede. O resultado é um filme que tenta ser honesto, mas não entende o que isso significa. É o existencialismo das celebridades, filtrado por lentes caríssimas e diálogos que parecem pedir desculpa por existirem.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.