Crítica | os afetos e os perrengues da vida cotidiana se encontram na Kasa Branca
Vitrine Filmes/Divulgação

Crítica | Os afetos e os perrengues do cotidiana se encontram na Kasa Branca

Em um mundo onde muitos filmes nos empurram para grandes dramas e reviravoltas, Kasa Branca chega com a leveza e a honestidade de quem não precisa de grandes artifícios para contar uma história de vida. Dirigido por Luciano Vidigal, o filme nos apresenta a vida de Dé (Big Jaum), um adolescente negro da periferia carioca, e sua relação com a avó, Dona Almerinda (Teca Pereira), diagnosticada com Alzheimer. A simplicidade do enredo é, na verdade, o que torna tudo tão tocante. Em vez de buscar um melodrama barato, Vidigal escolhe olhar para o cotidiano de forma real, sem cair na tentação de explorar apenas os aspectos trágicos da vida ou de uma glamourização da pobreza.

Esse jeito mais contido e autêntico de tratar as histórias é algo que, de certa forma, lembra o trabalho do cineasta americano Jim Jarmusch, que tem uma habilidade única de transformar as pequenas coisas da vida cotidiana em algo fascinante. Vidigal, em seu filme, conta a história de pessoas comuns, em situações aparentemente banais, e ainda assim consegue extrair do ordinário algo extraordinário.

Em Kasa Branca, a vida de Dé e de sua avó, marcada pela luta diária contra a falta de recursos e a dor da doença, nunca é tratada como um grande épico ou um espetáculo de sofrimento. Pelo contrário, cineasta trata esses temas com uma abordagem realista e sem artifícios, deixando o afeto entre as pessoas – o cuidado, a amizade, a solidariedade – como os principais motores da narrativa.

Não há apelos para que sintamos pena de Dé ou da avó, mas sim um convite para acompanharmos a rotina deles, com suas dificuldades, mas também com suas alegrias e momentos de ternura.

Kasa Branca não explora a Alzheimer como um gatilho de tragédia, mas como uma realidade que, apesar de dura, também faz parte do tecido da vida. Uma das grandes valências do filme consiste justamente em não precisar de grandes eventos ou revelações para nos emocionar. Ele apenas é honesto em nos colocar na vida de seus personagens, e o que eles fazem com isso é o que importa.

A ausência do pai de Dé, interpretado por Babu Santana, também é uma questão importante no filme, mas, mais uma vez, é tratada com uma naturalidade que não exige grandes explicações. O pai está ausente, não porque seja um vilão ou uma vítima, mas porque faz parte da realidade de muitos jovens periféricos.

A relação dele com seu pai não é marcada por grandes confrontos, mas por um silêncio que diz mais do que qualquer palavra poderia dizer. O filme não precisa nos convencer de nada sobre a falta do pai. Apenas a coloca como parte do cotidiano do protagonista, assim como as dificuldades financeiras, a falta de apoio da saúde pública e a luta diária para cuidar de sua avó.

Em um Rio de Janeiro saturado de representações de favelas como espaços de conflito e desespero, o diretor opta por uma estética mais contemplativa. As câmeras em travellings, os planos largos e as cenas em profundidade de campo não apenas nos apresentam a comunidade da Chatuba, mas também a sua paisagem interna, emocional e espiritual. O uso do espaço é estratégico: a favela, aqui, não é um pano de fundo sombrio, mas um cenário onde a vida pulsa em sua essência mais pura.

Crítica | os afetos e os perrengues da vida cotidiana se encontram na Kasa Branca
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O roteiro, também assinado por Vidigal, brilha pela sua honestidade e pela forma como consegue entrelaçar os dramas pessoais de seus personagens com um senso de humor irreverente e profundamente afetivo. Há, de fato, uma leveza que transita pelo filme, que se desvia das armadilhas do melodrama, mas sem jamais minimizar a dor ou as dificuldades.

Quando Dé, passa por momentos de crise e desespero, o filme não busca chocar ou gerar um grande impacto emocional através de golpes baixos. Em vez disso, ele nos convida a viver ao lado dele, a acompanhar seus sentimentos e a sentir sua angústia através da sutileza. O ator, com seu olhar vulnerável e gestos contidos, se torna o centro de uma narrativa que jamais se distancia de sua humanidade, permitindo ao público não apenas torcer por ele, mas também refletir sobre os próprios relacionamentos e perdas.

Essa vulnerabilidade e força de Big Jaum, aliada ao talento de Teca Pereira como Dona Almerinda, é uma das grandes riquezas do filme. A química entre os dois personagens é palpável, e é através dessa troca de afetos que o filme atinge seu ápice emocional.

Crítica | os afetos e os perrengues da vida cotidiana se encontram na Kasa Branca
Vitrine Filmes/Reprodução

A interpretação de Teca, especialmente, merece destaque pela capacidade de expressar uma gama de emoções com o mínimo de movimento. A fragilidade de sua personagem é retratada de maneira tão intensa que, mesmo quando suas palavras falham, seus olhos falam mais alto do que qualquer diálogo poderia. Ao lado de Jaum, ela constrói uma das duplas mais tocantes que já vimos na tela, e o espectador é irresistivelmente puxado para dentro dessa relação de amor profundo, que resiste até aos limites do esquecimento.

E não se engane, Kasa Branca não é apenas sobre a relação entre avós e netos, ou sobre o sofrimento da doença. O filme é um retrato do afeto em várias de suas formas. Há o afeto entre amigos, como o vivido por Adrianim (Diego Francisco) e Martins (Ramon Francisco), cujas atuações igualmente intensas nos remetem àquela amizade genuína que transcende as dificuldades da vida.

O trio de amigos de Dé é o que torna o filme ainda mais cativante – são eles que trazem leveza, risadas e até mesmo momentos de descontração em meio a toda a dor que permeia a narrativa. E essa amizade não se limita a uma troca de piadas ou brincadeiras. Ela é construída através da cumplicidade silenciosa, do apoio incondicional e da capacidade de rir diante das adversidades. No fundo, é essa amizade que vai salvar Dé, assim como ele tenta salvar sua avó. O apoio emocional entre os amigos é, de fato, o alicerce que sustenta o filme.

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O que Vidigal faz com maestria em Kasa Branca é desconstruir o estereótipo do “adolescente marginalizado da favela”, apresentando um personagem que, ao mesmo tempo, é profundamente humano e repleto de qualidades que frequentemente são invisibilizadas no cinema mainstream. Existe a milícia, a esperança de ascensão na vida por meio do rap – representado pelo personagem do L7nnon – e até uma cena envolvendo roubo, mas nada disso é realmente importante, a câmera de Vidigal filma de forma ordinária, como coisas que acontecem e fazem parte da vida daqueles personagens.

O filme nos ensina que, por mais difícil que a vida possa ser, por mais que as perdas nos devastem, o afeto é a linha que conecta nossas vidas. Seja entre família, amigos ou até mesmo com nós mesmos, os afetos têm o poder de curar e de gerar resiliência.

Kasa Branca é um filme sobre dar e receber afeto. E ao longo de sua narrativa, ele nos convida a refletir sobre como todos os laços que formamos – sejam eles com os outros ou com as memórias que carregamos – têm o poder de nos transformar de maneiras profundas e inesperadas.

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