Mesmo contando com uma diversidade rica de cineastas, o cinema iraniano sempre foi um território de muita sensibilidade e tensão. Suas narrativas, muitas vezes simples à primeira vista, são carregadas de significados profundos, onde a vida cotidiana se entrelaça com as duras realidades políticas e sociais. Em Meu Bolo Favorito, dirigido por Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha, encontramos uma história de amor que, à primeira vista, pode parecer uma comédia romântica, mas logo revela ser muito mais do que isso. A relação entre Mahin e Faramarz, dois idosos que buscam companhia na solidão da velhice, transcende o óbvio e se torna uma reflexão poética sobre a liberdade, o desejo e a resistência em um mundo opressor, especialmente para as mulheres.
O filme nos apresenta a Mahin (Lily Farhadpour), uma mulher de 70 anos que vive sozinha desde a morte do marido, há 30 anos. Sua rotina é tranquila, mas marcada pela solidão. Ela vive em um espaço cheio de recordações do passado — fotos, objetos, e a memória de um amor perdido. Essa solidão não é apenas a de uma mulher que envelhece, mas de uma viúva que carrega as marcas de uma sociedade patriarcal, onde a vida das mulheres é, muitas vezes, limitada ao papel de esposa, mãe ou filha. Ela vive cercada por lembranças, mas também por uma sensação de que sua vida, de alguma forma, já passou.
A maneira como o filme nos conduz pelos dias silenciosos de Mahin, sempre com uma câmera calma e observadora, reflete uma das grandes virtudes do cinema iraniano: a paciência. Cada pequeno gesto — como preparar um chá, fazer compras ou se arrumar para um encontro — ganha um peso emocional. A câmera não acelera os movimentos, nem busca acelerar o ritmo. Pelo contrário, ela nos permite absorver cada momento, refletindo o tempo que passa para Mahin, mas também para nós, espectadores.
Essa abordagem minimalista não é só uma característica estética, mas uma forma de imergir nas emoções mais sutis e nas camadas da narrativa. Como é possível notar na imagem abaixo, o enquadramento da personagem à direita, deixa propositalmente uma lacuna à esquerda, para causar no espectador um estranhamento e tornando maior a solidão de Mahin.

O grande movimento da trama começa com um pequeno gesto: a proposta de suas amigas para que Mahin, com mais de 70 anos, ainda procure o amor. Inicialmente cética, ela se vê tocada por essa ideia, que começa a germinar dentro de sua mente. E é com essa semente que a história começa a florescer, mostrando que, mesmo na velhice, o desejo, o prazer e a necessidade de conexão não desaparecem. O que Mahin busca não é apenas um novo amor, mas a chance de ser vista de novo, de existir fora das sombras da rotina e da espera. Seu primeiro passo em direção a essa liberdade ocorre quando ela conhece Faramarz (Esmail Mehrabi), um taxista que, como ela, leva uma vida solitária e sem grandes expectativas.
O encontro entre Mahin e Faramarz não é uma história de amor que explode em paixão. Não há grandes declarações, nem gestos grandiosos. Ao contrário, tudo é feito de forma delicada, com um humor nervoso e uma timidez que logo se transforma em cumplicidade. Esse romance entre os dois idosos é mais uma história de redescoberta do que uma busca por algo novo. Há uma leveza na maneira como eles se aproximam, na troca de olhares, no simples gesto de dançar juntos e, até mesmo, no vinho compartilhado. Mas, por trás dessa suavidade, também se esconde um subtexto que remete à resistência.

É impossível não perceber as pequenas metáforas que o filme tece ao longo da narrativa, como na foto de Mahin no começo do filme, quando ela aparece em um vestido de noiva, não é apenas um retrato do passado, representando o que foi perdido e o que ela agora precisa redescobrir: o direito de ser feliz, de sentir prazer, de ser vista como uma mulher, não apenas como a viúva que ficou para trás. E é essa luta silenciosa pela liberdade que vai se intensificando à medida que a história avança, até se manifestar de forma subversiva nas cenas finais.
A força de Meu Bolo Favorito reside também na maneira como ele lida com o contexto social e político do Irã, sem nunca ser explícito demais, mas fazendo com que os elementos de censura e repressão se infiltrassem nas situações cotidianas. Pequenos gestos, como tomar um copo de vinho ou dançar juntos na privacidade do lar, tornam-se um símbolo de liberdade. O filme brinca com a ideia de que esses momentos aparentemente simples têm um peso imenso em uma sociedade onde as mulheres são constantemente vigiadas e controladas. Há uma força silenciosa nesses gestos, uma forma de resistência contra um regime que quer moldar e reprimir as emoções humanas mais básicas.
A jornada de Mahin e Faramarz é, em muitos aspectos, sobre a resistência das mulheres iranianas, que, apesar das limitações impostas pela sociedade, buscam maneiras de se reinventar e de se afirmar. O fato de eles serem idosos não torna a busca menos legítima ou significativa. Pelo contrário, a velhice se torna um campo fértil para a redescoberta do prazer, da liberdade e da dignidade. O filme se recusa a retratar a velhice como uma condenação, uma etapa da vida em que os desejos e sonhos devem ser apagados. Ao contrário, ele nos lembra que a busca pela felicidade e pela conexão nunca é tarde demais.

É muito difícil não se emocionar com Meu Bolo Favorito, não apenas pela história de Mahin e Faramarz, mas pela reflexão que ele provoca. O cinema iraniano tem uma forma única de tratar de temas ditos “universais”, como a solidão, o amor e a resistência, colocando-os dentro de um contexto cultural e político muito específico, mas ao mesmo tempo tocando as questões humanas que nos afetam a todos. E, talvez, seja essa a grande beleza do filme: a maneira como ele, com seu tom suave e quase imperceptível, mostra o quão corajoso é lutar para viver a vida que merecemos, independentemente das pressões sociais ou políticas. O que importa não é o tempo que temos, mas como decidimos usá-lo. E talvez, no caso de Mahin e Faramarz, a maior lição seja exatamente essa: nunca é tarde demais para ser livre.
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