Crítica | maternidade e culpa andam de mãos dadas em 'A Garota da Agulha'
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Crítica | Maternidade e culpa andam de mãos dadas em ‘A Garota da Agulha’

O cinema tem uma incrível capacidade de nos transportar para outros tempos, outras realidades, e, muitas vezes, para os abismos mais profundos da alma humana. Em A Garota da Agulha, dirigido por Magnus von Horn, trata-se de uma obra que não só explora os horrores de um período pós-guerra, mas também nos leva a uma jornada insuportável sobre o medo e a culpa que se abatem sobre suas personagens, cujos destinos estão entrelaçados com o invisível e o terrível.

Baseado em uma história real, a trama de A Garota da Agulha se passa na Dinamarca pós-Primeira Guerra Mundial e segue Karoline (Victoria Carmen Sonne), uma jovem mulher grávida e sem recursos, que se vê envolvida com uma mulher chamada Dagmar (Trine Dyrholm), que oferece serviços clandestinos de adoção de bebês indesejados. No entanto, o que começa como um drama sobre a luta pela sobrevivência e a maternidade se transforma em uma jornada cada vez mais angustiante e psicologicamente perturbadora.

Logo de início, uma das características mais marcantes do filme é sua estética visual, que é toda construída em preto e branco, sem vergonha de remeter ao expressionismo alemão. Essa escolha não é apenas estilística, mas uma maneira de refletir o mundo sombrio e a falta de esperança em que as personagens vivem.

Em vez de tentar emular a vivacidade do passado com cores vibrantes, Michał Dymek conduz a fotografia do filme usando as sombras e a luz de forma a criar um ambiente que parece sufocante e desolado. Essa fotografia destaca os contrastes – a luz fria iluminando apenas alguns detalhes, enquanto o restante das cenas mergulha em sombras que parecem refletir os sentimentos de desespero e perda das personagens.

Além disso, o design de som de Frederikke Hoffmeier também é fundamental para a atmosfera do filme. Em vez de uma trilha sonora tradicional orquestrada, o filme utiliza sons baixos, grunhidos e batidas fortes, que vão aumentando a sensação de opressão. Essas sonoridades ajudam o espectador a sentir a tensão do ambiente e também refletem o estado emocional das personagens. O som não está ali apenas como um fundo, mas como uma forma de aumentar o impacto das cenas, fazendo com que o público se sinta imerso na história, como se fosse possível ouvir o peso da desolação ao redor.

Já o roteiro de Line Langebek Knudsen em nenhum momento julga sua protagonista e a direção de von Horn reforça que estamos diante de uma mulher grávida, sem marido e sem condições financeiras, em um contexto onde a pobreza extrema parece ser o destino de muitas mulheres. Existe uma bom trabalho de construção o ambiente social e político após a guerra afeta as escolhas das pessoas, especialmente as mulheres, que, por muitas vezes, se veem em situações sem saída. Karoline, apesar de suas dificuldades, ainda carrega uma certa esperança no começo, mas logo a realidade vai se impondo, e a trama vai se tornando cada vez mais angustiante.

A atuação das duas protagonistas é uma das grandes forças de A Garota da Agulha. Vic Carmen Sonne, como Karoline, entrega uma performance muito emocional. Sua personagem passa por uma mudança significativa ao longo do filme, e Sonne consegue transmitir de forma impressionante as angústias, o medo e a sensação de desesperança de sua personagem. A atriz usa o olhar e as expressões faciais de forma sutil, mas muito eficaz, para nos fazer entender o peso das decisões de Karoline.

Ao mesmo tempo, Trine Dyrholm, que interpreta Dagmar, brilha em um papel muito mais complexo. Inicialmente, ela parece ser uma espécie de “salvadora”, mas aos poucos vamos percebendo sua verdadeira natureza. Dyrholm consegue tornar sua personagem ao mesmo tempo carinhosa e aterrorizante.

No coração de A Garota da Agulha está a questão da maternidade, mas o filme vai além de um simples drama sobre o cuidado e o amor materno. A história mostra as complicações da maternidade em um mundo onde as mulheres têm poucas opções e pouco poder para decidir sobre suas vidas e corpos. A relação de Karoline com a maternidade é, no começo, uma fonte de angústia, já que ela não tem condições de criar o filho que espera. O filme questiona até que ponto uma mulher tem controle sobre sua própria decisão de ser mãe e as consequências que surgem quando as opções são limitadas.

A maternidade, que poderia ser vista como um tema acolhedor, aqui assume um tom mais sombrio. Karoline, ao entregar seu filho para adoção, sente uma mistura de alívio e culpa, e o filme explora essa ambiguidade. As escolhas das personagens são, em muitos momentos, difíceis e, muitas vezes, motivadas pela falta de alternativas, e é exatamente aí que A Garota da Agulha se destaca ao nos fazer refletir sobre o que significa ser mãe em um contexto onde todas as decisões são feitas sob pressão e em condições extremas.

A tensão no filme não é apenas criada pela narrativa, mas também pela forma como ele lida com o simbolismo. A agulha, que aparece no título e ao longo da história, é um símbolo poderoso, que não se limita ao simples ato de dar à luz, mas também à ideia de sofrimento, de cortar algo para tentar se libertar, mas sem conseguir realmente escapar. Isso é ampliado pela própria construção da história, onde o tempo todo sentimos que as personagens estão sendo arrastadas para um destino que não conseguem controlar, e onde cada decisão, por mais simples que pareça, carrega um peso imenso.

Além disso, a atmosfera e a narrativa fazem referência a um cinema mais clássico e sombrio, lembrando filmes de diretores como Carl Theodor Dreyer. A maneira como a luz e a sombra são usadas, os planos mais longos e o foco no sofrimento interno das personagens fazem o filme se aproximar do estilo de diretores que lidam com a psicologia humana de maneira intensa e filosófica. O filme é, portanto, uma espécie de homenagem ao cinema mais reflexivo, mas ao mesmo tempo é uma obra com seu próprio estilo e identidade.

A forma como Magnus von Horn usa a fotografia, o som e as atuações para construir a tensão é impressionante, e a história, embora perturbadora, é uma reflexão sobre a maternidade, a culpa e as escolhas feitas em um contexto de desesperança, nos convidando a questionar e refletir sobre os limites da responsabilidade e as consequências de nossas decisões.

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