Há algo quase mágico na animação em stop-motion, especialmente quando feita com massinha. Cada movimento, cada expressão, parece carregar a marca das mãos que a moldaram, como se o calor humano dos criadores estivesse impresso em cada frame. É uma técnica que exige paciência, dedicação e um olhar artesanal que contrasta com a frieza das animações digitais modernas. E é justamente esse charme inconfundível que faz de Wallace & Gromit – Avengança uma experiência tão cativante. O filme, que marca o retorno da dupla mais querida da Aardman Animations, não só resgata a nostalgia de quem cresceu acompanhando as trapalhadas do inventor desastrado e seu fiel cachorro, mas também traz à tona uma crítica sutil e bem-humorada sobre nossa relação com a tecnologia e, mais especificamente, com a Inteligência Artificial (IA).
A trama gira em torno de Wallace, sempre otimista e cheio de ideias mirabolantes, que decide criar um robô jardineiro para facilitar a vida dos moradores da cidade. No entanto, como era de se esperar, a invenção sai do controle e acaba causando mais problemas do que soluções. Enquanto isso, Gromit, o cão silencioso e pragmático, assume o papel de herói, tentando consertar a bagunça enquanto Wallace se mete em encrencas. O vilão desta vez é Feathers McGraw, o pinguim astuto que já havia causado problemas em “Wallace & Gromit: As Calças Erradas”, e que agora retorna com um plano ainda mais elaborado.
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O que chama a atenção, porém, não é apenas a trama, mas a forma como ela é contada. O roteiro de Mark Burton (“Paddington – Uma Aventura na Floresta”) não é focado no que é escrito, mas no que é mostrado. Burton é experiente e mistura isso com a juventude de Merlin Crossingham, que estreia na direção ao lado da lenda da animação em stop-motiuon Nick Park, criador dos personagens-título.
O trabalho harmônico do trio faz da animação em stop-motion, com suas texturas e movimentos quase palpáveis, criam um mundo que parece vivo, como se pudéssemos tocar os cenários e sentir a massinha sob nossos dedos. Essa técnica, que pode parecer antiquada para alguns, é justamente o que dá ao filme sua alma. Cada detalhe é cuidadosamente elaborado, desde as expressões faciais dos personagens até os cenários repletos de pequenas piadas visuais. É uma celebração do trabalho manual, do artesanato que resiste à era da automação.
E é aqui que a crítica às IAs começam a ganhar forma. Wallace, com sua ingenuidade e entusiasmo, representa o espírito humano que busca constantemente inovar e criar. No entanto, sua falta de cautela e sua confiança excessiva na tecnologia acabam gerando consequências desastrosas. O robô jardineiro, que deveria ser uma solução, transforma-se em um problema, esterilizando os jardins e eliminando qualquer traço de individualidade e beleza. É uma alegoria poderosa para os perigos da IA quando usada de forma irresponsável, sem considerar as nuances e a criatividade que só os seres humanos podem oferecer.
Gromit, por outro lado, é a voz da razão. Sempre atento e precavido, ele personifica a consciência que muitas vezes falta em meio ao progresso tecnológico. Sua relação com Wallace é o coração do filme, uma dinâmica que equilibra o caos e a ordem, a ingenuidade e a sabedoria. Enquanto Wallace representa o sonho, Gromit é o pé no chão, aquele que garante que as coisas não saiam completamente dos trilhos.
O humor, como sempre, é um dos grandes trunfos da produção. A Aardman tem um talento único para criar piadas que funcionam em múltiplos níveis, agradando tanto crianças quanto adultos. Em Avengança, as referências vão desde clássicos do cinema, como “Cabo do Medo”(1991), até críticas sutis à vigilância policial e à dependência tecnológica.
Há também uma série de piadas visais que enchem os olhos, como galinhas aparecendo em lugares inesperados ou Wallace se metendo em situações absurdas. É um humor que não precisa de diálogos elaborados para funcionar, e isso é parte do charme da dupla.
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No entanto ritmo do filme parece irregular, isso porque há uma tentativa de encaixar muitas ideias em um espaço de tempo limitado. Algumas cenas se arrastam mais do que deveriam, enquanto outras parecem apressadas, o que pode tirar um pouco do brilho da experiência. O vilão, Feathers McGraw, embora divertido, não chega a ser memorável como em sua aparição anterior. Dada a expectativa criada pelo título, esperava-se um antagonista mais grandioso e cheio de personalidade, mas ele acaba ficando um pouco esquecido em meio ao caos de informações e ideias encapsuladas dentro do longa.
Ainda assim, o filme consegue entregar uma mensagem importante de forma leve e acessível. A crítica à IA não é imposta de maneira didática, mas sim trabalhada através de metáforas criativas e situações engraçadas. É uma abordagem que permite que o público reflita sobre os temas sem se sentir sobrecarregado, algo que é especialmente importante em uma produção voltada para todas as idades.
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E é justamente essa leveza que faz de Wallace & Gromit – Avengança uma experiência tão agradável. O filme não tenta ser revolucionário ou profundamente filosófico; ele simplesmente nos convida a rir, a nos emocionar e, de quebra, a pensar sobre os caminhos que estamos trilhando como sociedade. Em um mundo cada vez mais dominado pela tecnologia, é reconfortante ver uma produção que valoriza o artesanato, a criatividade e a humanidade.
No final das contas, o filme nos lembra que, por mais que a tecnologia avance, há certas coisas que só as mãos humanas podem criar. A massinha, com sua textura única e seu charme inconfundível, é um testemunho disso. E, assim como Wallace e Gromit, ela nos convida a abraçar o caos, a rir das trapalhadas e, acima de tudo, a valorizar as conexões que nos tornam humanos. Afinal, como o próprio Wallace diz, “eu posso viver sem inventar, mas não posso viver sem… meu melhor amigo.” E é essa amizade, tão simples e tão verdadeira, que continua a nos aquecer o coração, como uma xícara de chá quentinha em um dia frio.
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