O cinema de Ruy Guerra sempre foi um campo fértil para as contradições. Em Aos Pedaços, sua mais recente obra, reflete uma tentativa de captar a efemeridade e a fragmentação da mente humana, mas que acaba tropeçando nas suas próprias armadilhas. O filme remete diretamente a um cinema de ideias, com uma estética que se alega sofisticada, mas, em essência, se enreda em uma trama excessivamente verborrágica e repetitiva, que, ao invés de aprofundar, acaba superficializando a complexidade que tenta explorar.
A primeira impressão que Aos Pedaços provoca é a de um pastiche do que o cinema culto, ou supostamente profundo, seria há algumas décadas. A obsessão com a dualidade, os dilemas filosóficos e a religiosidade são pincelados com uma fotografia em preto e branco que se oferece como uma tentativa de imprimir gravidade ao filme. O elenco, por sua vez, é contido, com atuações que se alternam entre o árido e o melodramático. No entanto, o maior desafio da obra não está na superfície das imagens ou nas palavras que ecoam por entre os cenários, mas na desconexão entre o que o filme quer transmitir e o que realmente entrega ao espectador.
O principal elemento do filme é o dilema do protagonista: Eurico (Emílio de Mello) um homem fragmentado, perdido em sua própria mente e em um mundo aparentemente sem sentido após suspeitar que uma de suas duas mulheres – Ana (Simone Spoladore) e Anna (Christiana Ubach) planeja sua morte.
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A narrativa é marcada por diálogos longos, aparentemente carregados de profundidade, mas que, a cada repetição, vão perdendo sua eficácia. As palavras tornam-se ecos vazios, como se a trama estivesse mais preocupada em parecer complexa do que efetivamente oferecer algo substancial. O texto de Guerra, como um rio caudaloso, se arrasta para longe do ponto inicial e só leva a mais divagações sobre o nada.
O que poderia ser uma alegoria forte sobre o vazio da existência, algo que remete à obra de Kafka ou a angústia existencial em filmes de Bergman, acaba se perdendo em uma circularidade que pouco acrescenta à experiência fílmica. Em vez de evoluir, o filme se esgota em si, como um relógio quebrado que insiste em girar em círculos, mas nunca marca hora. É uma busca constante por algo novo, mas que, no fim das contas, só revela um abismo de repetição.
A escolha estética do preto e branco, embora estilisticamente interessante, também se revela um tanto redundante, especialmente à medida que o filme avança. Inicialmente, há um encanto pelo contraste, pelas sombras que se alongam e pelas luzes que quebram a monotonia dos quadros. Mas, como o próprio filme, o efeito acaba se tornando cansativo, e o que antes parecia uma construção formal requintada se transforma em um artifício vazio. O uso da fotografia para refletir a fragmentação da mente do protagonista, que à primeira vista parece sofisticado, acaba se tornando um truque que se esgota. Em uma analogia com o próprio título, Aos Pedaços pode ser descrito como um quebra-cabeças visualmente deslumbrante, mas cujas peças não se encaixam de forma harmônica.
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A impressão que se tem, especialmente nos momentos finais, é que o filme tenta fazer do excessivo uma virtude. Esse exercício de tratar o expectador como burro chega ao seu ápice no final, ao qual um personagem precisa explicar em detalhes o que o espectador deveria ter entendido pela própria experiência, revela uma insegurança que contraria a proposta de um cinema introspectivo. Ao tentar ser mais inteligente do que realmente é, a obra acaba se entregando a um final didático, uma tentativa de amarrar o que, ao longo de sua duração, já havia se perdido nas entrelinhas de um texto que nunca consegue se aprofundar.
Porém, apesar das falhas evidentes, a obra conta com momentos de grande beleza visual, e o elenco também não faz por onde. Julio Adrião, por exemplo, interpreta um pastor com uma intensidade que se destaca. Sua atuação, embora caricatural de um relidos que parece demonstrar ter pouca fé, serve como uma âncora no meio de um mar de verborragia. O trabalho do elenco é, de fato, o ponto mais sólido de um filme que se perde em seus próprios méritos cinematográficos.
A ironia, no entanto, está em perceber que Aos Pedaços funciona como um reflexo de um tipo de cinema “cult” que, ao tentar emular os grandes mestres, como Ingmar Bergman. Nesse contexto, Aos Pedaços parece acreditar que a forma por si só seria suficiente, mas, ao falhar em aprofundar o conteúdo, o que resta é um espetáculo vazio.
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A escolha de Guerra em manter a estrutura de uma peça de teatro, com longos monólogos e a escassez de cenas dinâmicas, também remete à sua formação no teatro e à busca de um realismo psicológico que se dá muito mais por palavras do que por ação. Mas, no cinema, essa mesma abordagem se torna um risco. Ao invés de estabelecer uma conexão genuína entre o espectador e o personagem, a obra acaba criando uma barreira.
As palavras tornam-se cada vez mais insuportáveis à medida que se repetem sem agregar novos significados. Portanto, o título é, assim, mais do que adequado: Aos Pedaços é um filme que, ao tentar se afirmar como um marco de cinema autoral, se fragmenta e se perde em seus próprios excessos.
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