É ironicamente bonito assistir a Sem Chão (No Other Land | 2024), um documentário que uniu palestinos e israelenses em prol de mostrar os danos da guerra entre Israel e Palestina. Ato inegável, o longa mostra os esforços do palestino Basel Adra e de Yuval Abraham, jornalista israelense, para revelar o que acontece nas montanhas da Cisjordânia. Tal trabalho em conjunto apresenta as impressões dos povos árabe e judeu perante a guerra, as dificuldades de moradia e segurança enfrentadas pela população palestina e a luta de toda uma nação por direitos civis básicos.
Uma das mais antigas guerras do mundo, Israel X Palestina é um conflito que remonta a aproximadamente um século. Numa disputa que abarca tantas regiões e mudanças através do tempo, é em um recorte territorial que se passa a história contada por Basel: Masafer Yatta, um conjunto de vilarejos nas montanhas da Cisjordânia.

Fugir ou resistir
A primeira imagem já aproxima o espectador ao mostrar Basel, com apenas vinte e três anos, dentro de seu carro à noite. Ele atende a um chamado: estão demolindo casas no vilarejo. Basel acompanha as expulsões em massa do povo palestino na região desde que consegue se lembrar. Com o decorrer do filme, constata-se que a veia ativista foi passada por seus pais, que sempre lutaram pela causa. Com isso, a militância é algo que faz parte de sua vida.
Apesar de não poder impedir as demolições, ele documenta tudo em sua câmera para posteriormente divulgar nas redes sociais. O documentário se constrói entrelaçando as cenas de destruição com imagens dele ainda criança e da região há mais de dez anos atrás. Juntamente com os registros, Adra implementa suas primeiras memórias da infância: o primeiro protesto, a primeira prisão de seu pai, as demolições rotineiras.
Trata-se de uma vivência totalmente fora do padrão e do ideal para uma criança, mas Basel nasceu em meio à guerra. A composição da narrativa transparece muito bem a realidade de quem cresceu sem estabilidade ou segurança, e precocemente com responsabilidades adultas.
Pode-se dizer que Sem Chão é uma sequência de vlogs tensos que compõem um relato de forma muito bem amarrada. Assim, o depoimento ganha força e consistência com uma narração autêntica, corajosa e fugaz em primeira mão sobre a realidade do povo palestino no século XXI.
Sem chão para pisar, sem base para viver
Do início ao fim, ordens de demolição são entregues à população, que tem duas escolhas: ir embora em ou ficar e resistir. A pequena parcela que permanece no local sofre diariamente com a violência e o descaso do exército israelense – os soldados não concedem nem mesmo um tempo apropriado aos moradores para retirarem seus pertences antes da ação. Já em outros momentos, há confisco ilegal de pertences, embates corpo a corpo e até mesmo disparos contra os habitantes desarmados.
Há diferenças gritantes na experiência de cada lado do embate: palestinos não podem, por exemplo, dirigir livremente nem mesmo na região dos vilarejos. Além disso, eles não têm permissão para sair da Cisjordânia, sendo até mesmo as placas de carro sinalizadas em cores para identificação, com amarelo para israelenses e verde para palestinos.
Fica claro mesmo para quem não entende nada sobre o conflito que a grande questão dele se concentra na luta por território e poder. Ainda que os vilarejos apareçam em mapas do século XIX, o exército israelense não os reconhece enquanto propriedade dos palestinos. Em suma, Israel tem o objetivo de usar a localidade para treinamento militar, construindo e expandindo os assentamentos na região.
Uma luta por direitos básicos
A situação foi levada ao tribunal há vinte anos pelo povo árabe, em contestação às expulsões. No entanto, a decisão que se deu em 2019 determinou que as casas continuariam a ser demolidas. Sem esperança e lugar para onde ir, os residentes do local passam a morar em cavernas na região. “Não temos outra terra, é por isso que sofremos por ela”, desabafa Shamia, que teve a casa destruída e passou a morar numa caverna.
No entanto, para ela e sua família, o pior acontece quando Harun, seu filho mais velho, tem um embate físico com o exército em uma noite fatídica. Os soldados chegam para confiscar o gerador elétrico da casa, ao passo em que Harun resiste e é baleado no processo. O jovem fica tetraplégico e passa anos sem acesso a tratamento e condições ideais de vida, em decorrência das restrições de ir e vir imposta aos palestinos. Dois anos depois, Harun morre em decorrência do ferimento.
Amarelo Israel e Verde Palestina: Um aliado improvável em meio ao caos
Basel Adra e Yuval Abraham são, sem dúvida, os indivíduos centrais do documentário. Juntos, eles tentar modificar a situação da maneira que podem; acompanhando as ordens de demolição, registrando os acontecimentos em vídeo e texto e divulgando o tempo inteiro o assunto nas redes sociais. A grande ironia em tudo é que eles acabam por ilustrar cada qual seu povo, e o fazem da melhor forma possível: com uma relação permeada em seu cerne pelo diálogo.
Além disso, não há como não achar curioso o modo receptivo como os palestinos recebem Yuval entre eles no dia a dia. Sobretudo, cria-se aos poucos uma relação de confiança e parceria entre Basel e o jornalista, que passa a escrever mais e mais artigos sobre o tema e a acompanhar Basel em suas coberturas das demolições.

O contraste de personalidades também é um ponto perceptível; enquanto Basel é um cara paciente e quieto, que quase passa despercebido, Yuval é incisivo e ansioso, e chama a atenção aonde passa. Isso, é claro, tem explicação no contexto geral: apesar de bem aceito pelos residentes do vilarejo, chega um momento em que a tensão dos acontecimentos começa a gerar desconfiança com relação à Yuval. Ao mesmo tempo, os soldados israelenses o pressionam por ser judeu e estar “ajudando o outro lado”.
Como consequência de toda a pressão, ele se cobra para escrever mais e ver alguma mudança acontecer logo. Por outro lado, Basel demonstra uma calma inquietante diante de toda a espera por ajuda, inclusive em situações extremas – pessoas próximas sofrem machucados, ferimentos, tortura psicológica e ameaças. Ele mesmo é machucado, intimidado e ameaçado em vários momentos. A gente logo entende que essa é a vida que ele sempre conheceu e que, de alguma forma, acostumou-se a viver.
Conclusão
Tal qual, a produção escancara problemáticas para além do vital ao ser humano, como a falta de acesso à educação e ao mercado de trabalho. Apesar de todos os pesares, a percepção sobre o comportamento humano é inspiradora, uma vez que o povo árabe, de modo geral, demonstra força e resistência perante as situações.
A produção mostra também como o conflito vai além de uma disputa territorial e se expande para uma disputa por poder, pura e simplesmente. Em suma, é possível ver um pouco dos dois lados e suas impressões sobre a guerra em um registro intimista, inquietante e sensível.
Sem Chão está na disputa pelo Oscar de Melhor Documentário em 2025, e estreia no Brasil em 6 de março de 2025, com distribuição da Synapse Distribution. Por enquanto, você pode conferir o trailer aqui.
Leia outras críticas:
Nossa que filmaço , estou contando por dias para a estreia .
Sim!! Ansiedade a mil para ver o resultado da premiação hoje!!
A relação entre Basel Adra e Yuval Abraham tem como lema o famoso ditado “O inimigo do meu inimigo é o meu amigo”. A guerra sempre foi e será o maior inimigo da humanidade.
Documentário muito importante que mostra os danos da guerra entre Israel e Palestina. Tendo dois pontos de vista traz mais realidade.