Crítica | Vitória: O voyeurismo que não viu nada de interessante
Conspiração Filmes/Divulgação

Crítica | Vitória: O voyeurismo que não viu nada de interessante

O cinema é, antes de tudo, uma arte de olhares. E Vitória, o mais recente filme de Andrucha Waddington (“O Juízo”) parece ter esquecido disso. A obra, que chegou às telas com a promessa de contar uma história real inspiradora, acaba se perdendo em uma narrativa que não sabe para onde ir, com escolhas visuais e narrativas que beiram o inexplicável. Desde o pôster de divulgação – uma montagem digital tosca que parece ter sido feita em meia hora no Photoshop – já dava para sentir que algo estava fora do lugar. E, infelizmente, o filme confirma essa primeira impressão.

A trama acompanha Vitória, uma senhora solitária interpretada por Fernanda Montenegro, que, diante da violência crescente em sua vizinhança, decide agir. Armada com uma câmera, ela passa a documentar as atividades de traficantes de drogas, na esperança de colaborar com a polícia e trazer justiça para sua comunidade. A premissa é poderosa, mas o filme parece não saber o que fazer com ela. Em vez de mergulhar na complexidade da história, Vitória opta por uma narrativa superficial, cheia de clichês e diálogos que soam falsos.

Vamos começar pelos aspectos visuais, porque eles são o primeiro sinal de que algo está errado. O pôster do filme, como já mencionado, é um desastre. A montagem digital de Fernanda Montenegro segurando uma câmera, com um fundo que parece uma colagem de imagens de stock, é de um mau gosto que beira o inacreditável. E, infelizmente, essa falta de cuidado se reflete no filme. A fotografia, embora tenha momentos de beleza – como a iluminação acolhedora na casa de Nina –, é inconsistente. Há cenas que parecem ter sido filmadas sem nenhum planejamento, com enquadramentos que não dizem nada e uma paleta de cores que oscila entre o sem graça e o exagerado.

Em Vitória, a câmera parece estar ali apenas para registrar, sem nenhuma intenção artística. A relação de Vitória com o ato de filmar, que poderia ser uma metáfora poderosa para tantas coisas , o filme o reduz a um mero acessório. O mesmo vale para o aspecto do voyeurismo, que a direção parece flertar, mas não existe nada substancial nesse aspecto.

O roteiro, por sua vez, é talvez o maior ponto fraco do filme. Assinado por Paula Fiuza e Fábio Gusmão, a história de Joana da Paz, a mulher real que inspirou o longa, é repleta de nuances e desafios que poderiam render um drama intenso e emocionante. No entanto, o que vemos na tela é uma narrativa burocrática, que simplifica demais os conflitos e as motivações dos personagens.

Os diálogos são frequentemente previsíveis e sem profundidade, o que acaba por esvaziar o impacto das cenas. Além disso, os personagens coadjuvantes são tratados como meros figurantes, sem desenvolvimento ou relevância para a trama. Linn da Quebrada, por exemplo, que interpreta uma personagem carismática e cheia de potencial, acaba sendo subutilizada, com uma cena desnecessária que revela seu nome morto, algo que não acrescenta em nada à narrativa, além de ser mal tom.

A montagem também deixa a desejar. Transições abruptas e cortes apressados sugerem uma falta de confiança nas imagens e na capacidade do público de absorver as nuances da história. Há momentos em que a câmera captura olhares e expressões da Fernanda Montenegro que dizem mais do que qualquer diálogo, mas o filme parece não acreditar nisso, cortando rapidamente para a cena seguinte. Essa falta de paciência narrativa acaba por enfraquecer o impacto emocional do filme, que poderia ser muito maior se houvesse um maior cuidado com o ritmo e a construção das cenas.

No entanto, nem tudo está perdido. A atuação de Fernanda Montenegro é, sem dúvida, o ponto alto do filme. Aos 93 anos – quando foi gravado –, a atriz mostra que continua sendo uma das maiores intérpretes do cinema brasileiro, entregando uma performance cheia de nuances e profundidade. Seu olhar, sua postura e sua presença em cena são capazes de transmitir uma gama de emoções que o roteiro, por si, não consegue alcançar. É através dela que o filme ganha vida, e é graças a ela também que Vitória não se torna uma experiência completamente frustrante.

Apesar dos problemas, é importante reconhecer que o filme tem boas intenções. A história de uma idosa que decide enfrentar o crime organizado em sua comunidade é, sem dúvida, inspiradora e relevante, especialmente em um país como o Brasil, onde a violência e a corrupção são temas cotidianos. No entanto, boas intenções não são suficientes para fazer um bom filme. É preciso mais do que isso: é preciso coragem para explorar os temas de forma profunda, ousadia para arriscar na narrativa e, acima de tudo, respeito pelo público, que merece histórias bem contadas e personagens bem desenvolvidos.

Vitória é, em muitos aspectos, uma oportunidade perdida. A história real que inspirou o filme merecia uma abordagem menos engessada, que explorasse ao máximo os elementos cinematográficos à disposição. Em vez disso, o que vemos é uma narrativa que parece ter medo de arriscar, optando por um caminho seguro e previsível. O resultado é um filme que, apesar de contar com uma ótima atuação de Fernanda Montenegro, acaba por se perder em meio a escolhas narrativas e técnicas que não fazem jus ao potencial da história.

E aqui chegamos ao ponto crucial: criticar um filme como Vitória não é ser antipatriota ou desmerecer o cinema nacional. Pelo contrário, é justamente porque acreditamos no potencial da nossa cinematografia que precisamos cobrar mais. O Brasil tem uma produção riquíssima e somos capazes de fazer cinema de altíssima qualidade. Nosso problema nunca foi a falta de talento ou criatividade, mas sim a distribuição e o acesso. E é por isso que precisamos ser incisivos em nossas críticas: porque o cinema brasileiro não é “café com leite”. Ele é forte, potente e merece ser tratado com a seriedade que merece.

Por fim, Vitória poderia ter sido um desses filmes que marcam época. Mas, infelizmente, preferiu ser apenas mais um. E é isso que dói: saber que, com um pouco mais de ousadia e cuidado, poderíamos ter tido uma obra à altura do talento de Fernanda Montenegro e da importância da história que ela conta.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.