Há obras que transcendem o simples ato de contar uma história. Elas se tornam experiências sensoriais, mergulhos profundos em universos onde a arte e a narrativa se fundem de maneira quase alquímica. Somna, criação das talentosas Becky Cloonan e Tula Lotay, é uma dessas obras. Ambientada em uma vila inglesa do século XVII, durante o auge da caça às bruxas, a graphic novel é uma mistura hipnótica de horror gótico, erotismo e crítica social. As artistas não caem na armadilha de mais uma história sobre opressão e repressão sexual e constroem uma interessante narrativa visual que desafia as convenções, explorando os limites entre o real e o onírico com uma maestria rara.
A trama acompanha Ingrid, uma jovem casada com um caçador de bruxas puritano e sexualmente reprimido. Enquanto ele persegue mulheres acusadas de bruxaria, Ingrid é deixada à própria sorte, mergulhando em um turbilhão de desejos reprimidos que se manifestam em pesadelos vívidos. Esses sonhos, no entanto, não são meras escapadas da mente; eles são portais para um mundo onde o erótico e o sobrenatural se fundem, personificados por uma figura sombria que gradualmente ganha poder sobre ela. A história, embora simples em sua estrutura, é profundamente simbólica, usando o contexto histórico das bruxarias para explorar temas universais como a libertação feminina, a repressão sexual e a luta contra o patriarcado.
O que torna Somna verdadeiramente especial, no entanto, não é apenas sua narrativa, mas a forma como ela é contada. Cloonan e Lotay dividem a responsabilidade artística de maneira inteligente: Cloonan cuida das cenas do “mundo real”, enquanto Lotay assume as sequências oníricas. Essa divisão não é apenas funcional; ela é temática.
Cloonan, conhecida por seu traço detalhado e expressivo, cria um ambiente opressor e sujo, onde a rigidez do puritanismo é palpável. Seus personagens são delineados com precisão, e cada cena é carregada de uma tensão que reflete a repressão da época. Já Lotay, com seu estilo etéreo e quase impressionista, transporta o leitor para um mundo de sonhos onde as cores fluem como água, e as formas são suaves, quase líquidas. Sua paleta de cores, repleta de tons pastéis e contrastes sutis, cria uma atmosfera que é ao mesmo tempo sedutora e perturbadora.


Essa dualidade entre o real e o onírico é o cerne da obra. Enquanto Cloonan nos prende à terra firme, com suas regras rígidas e personagens presos em seus papéis sociais, Lotay nos liberta, mostrando um mundo onde os desejos mais profundos de Ingrid podem florescer, mesmo que à custa de sua sanidade. A transição entre esses dois mundos é tão fluida que, ao final da leitura, o leitor se vê questionando onde termina a realidade e onde começam os sonhos. Essa ambiguidade é intencional e serve para reforçar o tema central da obra: a luta de Ingrid para se libertar das amarras de um mundo que a oprime.
O erotismo em Somna é tratado com uma delicadeza rara. Longe de ser explícito ou vulgar, ele é sugerido através de imagens que brincam com a luz e a sombra, criando uma sensação de voyeurismo que é ao mesmo tempo íntima e perturbadora. As cenas de sonho, em particular, são um deleite visual. Lotay usa cores quentes e frias em harmonia, criando um contraste que reflete a dualidade de Ingrid: sua inocência versus seus desejos, sua submissão versus sua rebeldia. O uso de tons azulados e avermelhados, por exemplo, não apenas define o clima de cada cena, mas também serve como uma metáfora visual para a luta interna da protagonista.
Enquanto a arte é indiscutivelmente sublime, o roteiro, também assinado por Cloonan e Lotay, peca por ser um tanto básico. O que, não necessariamente é um problema, até consigo ver um paralelo entre Somna com o clássico “Suspiria” (1977) de Dario Argento, onde a narrativa não é lá tão importante quanto a história contata pela cores, luzes e trilha sonora.

Ingrid, como protagonista, é uma personagem interessante, mas seu arco de desenvolvimento é linear e previsível. Os personagens secundários, por sua vez, são pouco explorados, servindo mais como arquétipos. O marido de Ingrid, por exemplo, é o típico vilão puritano, enquanto sua amiga Maja é a figura libertária que tenta guiá-la. Essa falta de profundidade narrativa não me incomodou, mas tenho certeza que pode ser um impecilho na experiência de outras pessoas.
Ainda assim, é difícil não se deixar levar pela beleza visual de Somna. Cada página é deslumbrante, e a maneira como Cloonan e Lotay complementam o trabalho uma da outra é impressionante. A edição em capa dura — publicada pela Comix Zone no Brasil — com seu tamanho avantajado, é um convite para que o leitor se perca nos detalhes de cada ilustração. É uma experiência que vai além da leitura; é uma imersão em um mundo onde o visual e o emocional se entrelaçam de maneira única.

Cloonan e Lotay não apenas contam uma história; elas criam uma experiência sensorial que fica com o leitor muito depois que as páginas são viradas. E assim, como Ingrid em seus sonhos, o leitor é levado a questionar as fronteiras entre o real e o imaginário, entre a repressão e a liberdade. Nessa jornada, o que começa como uma história sobre bruxas e puritanismo termina como uma reflexão sobre a natureza do desejo e a luta pela liberdade — uma luta que, afinal, é tão atual hoje quanto era há 400 anos.
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