Em 2005, uma senhora, moradora de Copacabana, no Rio de Janeiro, decidiu que não ficaria mais calada. Enfurecida com a violência que assolava sua vizinhança e cansada de ser ignorada pelas autoridades, ela pegou uma câmera e começou a filmar. O que parecia um gesto solitário se transformou em uma das maiores denúncias contra o tráfico de drogas e a corrupção policial na cidade. Essa mulher era Joana Zeferino da Paz, a verdadeira inspiração por trás do filme Vitória, estrelado por Fernanda Montenegro.
A história de Joana é um retrato de resistência, mas também de contradições. Enquanto no cinema sua personagem, rebatizada como Nina, é interpretada por uma das maiores atrizes brasileiras, branca e consagrada, na vida real Joana era uma mulher negra, de traços firmes e voz incansável. A escolha do elenco gerou debates, mas a produção justificou: proteger sua identidade, mesmo após sua morte, foi uma decisão cuidadosa.
A janela que revelou o crime
Tudo começou na Ladeira dos Tabajaras, uma comunidade no coração de Copacabana. Joana, então com quase 80 anos, morava em um apartamento com vista para o movimento dos traficantes. Ela já havia tentado denunciar a situação à polícia, mas suas queixas eram tratadas com descaso. Até que, em 2003, após uma ação judicial contra o Estado — alegando que o tráfico desvalorizava seu imóvel —, recebeu uma resposta que a indignou. Um coronel da PM afirmou, em documento, que suas acusações eram mentirosas.
Foi a gota d’água. Joana comprou uma filmadora e, apoiando-a em uma mesinha improvisada com livros, começou a registrar tudo o que via da janela. Durante meses, acumulou fitas VHS mostrando a rotina do tráfico: jovens armados, policiais negociando, drogas sendo vendidas à luz do dia. Quando juntou provas suficientes, entregou o material a um delegado, mas nada mudou.
Foi então que o jornalista Fábio Gusmão entrou em cena. Ao tomar conhecimento das fitas, ele decidiu investigar. Encontrou Joana e, impressionado com sua coragem, ajudou a levar o caso ao Jornal Extra, onde trabalhava. Em 2005, o veículo publicou uma série de reportagens expondo o esquema, com Joana recebendo o codinome “Dona Vitória” para proteger sua identidade.
As denúncias tiveram impacto imediato. Mais de 30 pessoas foram presas, incluindo dois policiais militares envolvidos com o tráfico. Joana foi celebrada como heroína, recebendo prêmios como o “Faz Diferença”, do O Globo, e o PNBE (Pensamento Nacional das Bases Empresariais) de Cidadania. Mas a vitória teve um custo: ela foi ameaçada de morte e precisou entrar no Programa de Proteção a Testemunhas.
Pelos 17 anos seguintes, Joana viveu escondida, sob um novo nome e longe do Rio. Sua verdadeira identidade só foi revelada publicamente em fevereiro de 2023, quando ela morreu, aos 97 anos, vítima de um AVC. Na época, as filmagens do filme Vitória já estavam concluídas, mas a equipe manteve o cuidado de não expor detalhes que a ligassem diretamente à personagem do filme.
Por que Fernanda Montenegro interpreta Joana?

A escolha de Fernanda Montenegro para viver Joana no cinema levantou questionamentos. Afinal, por que uma atriz branca foi escalada para representar uma mulher negra? A explicação da produção é dupla:
Sigilo: Como Joana ainda estava viva durante as filmagens iniciais, qualquer detalhe que lembrasse sua aparência real poderia colocá-la em risco. Inverter características — como fazer o jornalista Fábio, branco na vida real, ser interpretado por um ator negro (Alan Rocha) — foi uma forma de despistar.
Admiração Pessoal: Segundo a roteirista Paula Fiuza, Joana era fã de Fernanda Montenegro. Ela citava “Central do Brasil” com frequência e admirava o trabalho da atriz. Ainda assim, a decisão não deixou de ser controversa. Em um país onde oportunidades para atores negros ainda são escassas, a escolha reacendeu o debate sobre representatividade no cinema.
A adaptação manteve a essência da história real, mas com algumas licenças artísticas. Enquanto Joana levou meses acumulando provas, no filme o processo parece mais acelerado. A personagem Nina também é mostrada como mais solitária do que Joana realmente era — uma escolha dramática para destacar seu isolamento durante os anos no programa de proteção.
O elenco ainda conta com Linn da Quebrada como Bibiana, uma personagem fictícia que representa a comunidade afetada pela violência, e Laila Garin em um papel inspirado em vizinhos que apoiavam Joana.
O filme como legado
Dirigido inicialmente por Breno Silveira (“Dois Filhos de Francisco”), Vitória foi concluído por Andrucha Waddington após a morte do cineasta em 2022. O longa não é apenas um tributo à coragem de Joana, mas também à persistência de quem acreditou em sua história.
Fernanda Montenegro, aos 93 anos durante as filmagens, mergulhou no papel com a intensidade que a consagrou. Em entrevista ao Fantástico, a atriz descreveu Joana como “A personagem é uma porta-voz do momento que se vive nesse País, da miséria, dos que não têm para onde ir”, destacou.
O filme chega aos cinemas em um momento em que a violência urbana e a relação entre crime e poder público seguem temas urgentes. A história de Joana da Paz, ou Dona Vitória, é um lembrete de que a mudança muitas vezes começa com um único gesto de coragem. E, às vezes, esse gesto é filmado por uma senhora decidida, diante de sua janela.
Joana da Paz não viveu para ver sua história no cinema, mas seu legado permanece. Seja como Nina no filme ou como Vitória nas reportagens, ela provou que mesmo uma única voz pode abalar estruturas. E, no final das contas, essa é a verdadeira vitória.
Para quem se interessou na história de Joana da Paz, o jornalista Fábio Gusmão, que participaou ativamente da história de da Paz, escreveu um livro sobre ela, seu passado e como essa moradora decidiu mudar a vida de todos ao seu redor.
Vitória está em cartaz nos cinemas brasileiros.
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