Val Kilmer: Uma vida entre luzes e sombras do cinema
Everett Collection

Val Kilmer: Uma vida entre luzes e sombras do cinema

A luz do cinema estadunidense perdeu um de seus rostos mais inquietos. Val Kilmer, o ator capaz de se transmutar em rockstars, cowboy, super-herói e piloto de caça, partiu aos 65 anos, vítima de uma pneumonia que encerrou uma trajetória tão brilhante quanto tortuosa. Sua morte, anunciada pela filha Mercedes, não foi apenas o fim de uma vida, mas o fechamento de um capítulo único na história de Hollywood — aquele em que um artista se doava tanto aos seus papéis que, às vezes, parecia desaparecer dentro deles.

Kilmer nunca foi um ator comum. Seus olhos azuis, às vezes gélidos como os de Iceman em “Top Gun”, outras vezes febris como os de Jim Morrison em “The Doors”, carregavam uma intensidade que ia além do roteiro. Ele não interpretava personagens; ele os habitava, como um espírito que se apodera de um corpo. E talvez tenha sido essa entrega absoluta — essa vontade de se perder para que outra persona nascesse — que o tornou tão fascinante e, ao mesmo tempo, tão difícil para a indústria.

Hollywood adora rótulos, e Kilmer foi chamado de muitas coisas: gênio, arrogante, temperamental, visionário. Mas nenhum desses epítetos captura a verdadeira essência de um homem que, longe dos holofotes, era um poeta, um místico, um sobrevivente. Um artista que, mesmo depois de perder a voz para o câncer, continuou a se expressar através da escrita, da pintura e de um documentário autobiográfico que é tanto um testamento quanto um último ato de resistência.

Em 1991, Oliver Stone decidiu levar para as telas a história da banda The Doors, e precisava de alguém que não apenas parecesse com Jim Morrison, mas que conseguisse ser Morrison — com toda a sua fúria criativa, seu charme destruidor e sua espiral autodestrutiva. Val Kilmer, então um jovem ator em ascensão após Top Gun, foi a escolha óbvia. O que ninguém esperava era o nível de devoção que ele traria ao papel.

Por um ano inteiro, Kilmer mergulhou no universo do Rei Lagarto. Aprendeu a cantar como ele, a mover-se como ele, a beber como ele. Estudou gravações, entrevistas, performances. Quando as filmagens começaram, nem os próprios membros da banda conseguiam distinguir onde terminava Kilmer e começava Morrison. Em certos takes, os técnicos choravam, convencidos de que estavam vendo o verdadeiro Morrison ressuscitado.

Mas essa imersão teve um custo psicológico devastador. Ao final das gravações, Kilmer estava tão imerso no personagem que precisou de terapia para redescobrir sua própria identidade. “Eu não sabia mais quem era Val”, confessou anos depois. Esse episódio revela muito sobre o ator: para ele, a atuação nunca foi apenas um trabalho, mas um ritual de transcendência, quase uma possessão.

Personagens que definiram Kilmer

Se há uma constante na filmografia de Kilmer, é a impossibilidade de categorizá-lo. Ele podia ser o herói ou o vilão, o louco ou o gênio, o amante ou o pistoleiro. Cada um de seus grandes papéis foi uma reinvenção radical, como se ele se recusasse a ser apenas uma coisa.

Iceman em Top Gun (1986)

Val Kilmer Top Gun
Val Kilmer em “Top Gun”

Antes de The Doors, Kilmer já havia deixado sua marca na cultura pop como Tom “Iceman” Kazansky, o piloto perfeccionista que desafiava Maverick (Tom Cruise) nos céus. Com sua postura impecável e frases cortantes (“You can be my wingman anytime”), Iceman era o antagonista que todo mundo amava odiar — até que, no final, revelava-se um aliado. Kilmer trouxe ao papel uma frieza calculista que, de certa forma, antecipava sua reputação na vida real como um homem difícil de decifrar.

Jim Morrison em The Doors (1991)

Val Kilmer: Uma vida entre luzes e sombras do cinema
Reprodução

Como já dissemos, este foi o papel que consumiu Kilmer. Sua interpretação do vocalista dos Doors não foi apenas uma atuação, mas uma ressurreição. Desde os trejeitos no palco até o olhar perdido nos últimos dias em Paris, Kilmer capturou a essência de Morrison com uma precisão quase sobrenatural.

Doc Holliday em Tombstone – A Justiça Está Chegando (1993)

Val Kilmer: Uma vida entre luzes e sombras do cinema
Reprodução

Se The Doors mostrou o Kilmer intenso, Tombstone – A Justiça Está Chegando revelou o Kilmer brilhante. Como Doc Holliday, o pistoleiro tuberculoso com um humor ácido e uma lealdade inquebrantável, ele entregou uma das performances mais carismáticas do cinema western. Sua entrega ao personagem foi tão completa que, até hoje, fãs repetem suas falas como se fossem poesia: “I’m your huckleberry”.

Batman em Batman Eternamente (1995)

Val Kilmer Batman
Val Kilmer como Batman

Após Michael Keaton abandonar o papel, Kilmer vestiu a capa do Morcego no controverso Batman Eternamente, de Joel Schumacher. Enquanto o filme foi criticado por seu tom excessivamente colorido, sua interpretação de Bruce Wayne foi uma das mais introspectivas da franquia — um homem dividido entre o dever e o desejo de uma vida normal.

Simon Templar em O Santo (1997)

Val Kilmer: Uma vida entre luzes e sombras do cinema
Reprodução

Em um de seus papéis mais subestimados, Kilmer interpretou Simon Templar, um ladrão sofisticado que se envolve em uma trama de espionagem internacional. O filme não foi um sucesso estrondoso, mas sua performance — cheia de charme e ambiguidade — em O Santo mostrou que ele podia ser um astro de ação sem perder sua profundidade.

Câncer, redenção e um último ato

Em 2014, Kilmer foi diagnosticado com câncer de garganta. A doença, que exigiu uma traqueostomia, roubou-lhe a voz — ironia cruel para um ator que havia vivido um dos maiores vocalistas do rock. Nos anos seguintes, ele se afastou dos holofotes, mas nunca deixou de criar.

Em 2021, lançou Val, um documentário autobiográfico que mesclava imagens de arquivo filmadas por ele mesmo ao longo de décadas com reflexões sobre sua carreira e saúde. O filme, exibido em Cannes, mostrou um Kilmer vulnerável, mas ainda apaixonado pela arte. Em uma cena especialmente comovente, ele tenta se comunicar com o público em um evento, usando um aparelho de voz. A plateia, emocionada, aplaude não por pena, mas por respeito.

Val Kilmer nunca se encaixou nos moldes de Hollywood. Ele era grande demais para os papéis pequenos e complexo demais para os papéis óbvios. Sua carreira foi uma sucessão de riscos, alguns brilhantes (The Doors, Tombstone), outros mal compreendidos (O Santo, Batman Forever). Mas mesmo em seus fracassos, havia algo admirável: a coragem de nunca repetir-se.

Val Kilmer se foi, mas suas personagens — tão vívidas, tão humanas — garantem que ele nunca será esquecido. E Kilmer multiplicou-se em dezenhas de rostos, vozes e almas. Sua luz, afinal, ainda está lá, projetada em todas as telas onde ele decidiu viver.

Leia outros especiais:

Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.