Crítica | Black Mirror – 7×6: USS Callister — Infinity continua no espaço, mas muda os alvos da sátira
Netflix/Divulgação

Crítica | Black Mirror – 7×6: USS Callister – Infinity continua no espaço, mas muda os alvos da sátira

Nesta 7ª temporada, Black Mirror pareceu, em alguns momentos, mais preocupada em revisitar seus próprios fantasmas do que em assombrar o público com novas ideias. No entanto, “USS Callister — Infinity” — a inédita sequência direta de um episódio anterior — prova que revisitar o passado não precisa ser um exercício de nostalgia vazia. Pelo contrário: pode ser uma viagem ainda mais emocionante quando feita com criatividade e coração.

Black Mirror arrisca uma continuação em uma antologia

O episódio original, “USS Callister”, da 4ª temporada, já era uma anomalia no universo da série. Combinando sátira ao “Star Trek”, crítica à cultura incel e uma trama de vingança digital, ele equilibrava humor e horror com muita habilidade. A continuação, no entanto, não se contenta em replicar a fórmula. Em vez disso, expande o mundo desses personagens — clones digitais presos em um jogo online — e os coloca em uma jornada que é menos sobre tecnologia e mais sobre sobrevivência, identidade e, surpreendentemente, esperança.

Sequências são armadilhas perigosas. Repetir o sucesso do original sem cair na redundância exige um roteiro que respeite o que veio antes, mas que também trace novos caminhos. Infinity acerta nesse equilíbrio. Enquanto outros episódios da temporada — como “Brinquedo” — pareciam reféns de suas próprias referências, essa sequência brinca com o passado sem ficar presa a ele.

O episódio começa com uma recaptulação — algo nunca antes visto em Black Mirror —, mas logo se transforma em uma narrativa autônoma. Os clones da USS Callister, antes vítimas de um tirano digital, agora são piratas em um universo online cheio de microtransações absurdas e jogadores irritados. A mudança de tom é sutil, mas significativa: se antes o perigo vinha de um homem ressentido, agora ele está na estrutura do próprio jogo — uma crítica afiada à economia dos games modernos, onde a imortalidade é privilégio de quem pode pagar.

Um dos maiores trunfos do episódio é sua abordagem emocional. Black Mirror muitas vezes trata seus personagens como peças em uma fábula distópica, mas aqui eles ganham profundidade. Cristin Milioti, em um desempenho duplo brilhante, diferencia a Nanette “real” (uma programadora insegura) de sua versão digital (uma líder destemida) com nuances físicas e vocais. Enquanto a original hesita, a clone age — e a tensão entre as duas gera cenas eletrizantes, como um confronto cheio de inveja e admiração mútua.

Jimmi Simpson, por sua vez, rouba a cena como James Walton, o CEO manipulador que agora precisa lidar com seu próprio clone — um náufrago mentalmente instável que fez amizade com uma pedra (sim, há um furo nas costas dela, e sim, é tão hilário quanto parece). Simpson oscila entre o patético e o ameaçador, e sua química com Milioti é um dos motores narrativos do episódio.

Do Star Trek ao No Man’s Sky

Visualmente, Infinity abandona o pastiche de Star Trek do primeiro episódio e abraça uma estética mais próxima de jogos de mundo aberto, como “No Man’s Sky”. As sequências espaciais são vibrantes, com batalhas que misturam ação caótica com o coreografado, lembrando Star Wars em uma escala menor. A direção de Toby Haynes mantém um ritmo ágil mesmo nos momentos mais contemplativos, e a fotografia explora cores saturadas — um contraste deliberado com o visual sombrio de muitos episódios da série.

O som também merece destaque. A trilha sonora mistura temas épicos com silêncios tensos, e o design de áudio reforça a imersão no jogo: o barulho de naves se chocando, o click assustador de um comando sendo executado, até mesmo a respiração ofegante dos personagens em situações limite. Tudo contribui para que o espectador sinta o perigo — afinal, esses clones podem morrer de verdade.

Se há uma fraqueza em Infinity, é sua relutância em mergulhar em questões políticas mais urgentes. O episódio original chegou no auge do #MeToo, e sua crítica à masculinidade tóxica era incisiva. Aqui, o vilão (um clone infantilizado de Robert Daly, interpretado novamente por Jesse Plemons) ainda representa o mesmo tipo de ameaça, mas o contexto social parece menos definido. A revelação de que a tecnologia de clonagem foi desenvolvida por uma grande empresa de streaming (adivinhe qual) é uma piada rápida, mas é mais um daqueles momentos que tentam fazer conexões com outros episódios de maneira forçada.

Ainda assim, o final traz uma reflexão interessante sobre o mito da “garagem” no Vale do Silício. O coração do jogo é, literalmente, uma recriação do espaço onde Daly foi explorado — uma metáfora para como as grandes empresas tech romantizam origens humildes enquanto perpetuam sistemas opressivos. Quando Nanette enfia um machado digital na cabeça do clone de Daly, é uma vitória não só sobre um vilão, mas sobre toda uma estrutura que permite que homens como ele existam.

Com o jogo sendo deletado, os clones da USS Callister encontram refúgio no corpo da Nanette real — uma solução que lembra o maluco “Quero Ser John Malkovich” (1999). Eles assistem The Real Housewives of Atlanta em sua mente, negociam tempo de tela e, de certa forma, encontram uma paz que o universo de Black Mirror raramente permite.

É um final que poderia soar absurdo em outro contexto, mas aqui funciona porque o episódio nunca perde de vista sua humanidade. Enquanto outros capítulos da temporada tropeçavam em repetições ou moralismos óbvios, Infinity lembra que, no fim das contas, Black Mirror é mais eficaz quando nos faz torcer por seus personagens — mesmo que eles sejam cópias digitais presas em um videogame.

Todas as sete temporadas de Black Mirror estão disponíveis na Netflix.

Leia as críticas dos outros episódios da temporada:

Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.