Havia um certo burburinho em torno de Vermiglio – A Noiva da Montanha desde que desbancou “Ainda Estou Aqui” no 81º Festival Internacional de Cinema de Veneza, em que conquistou cinco prêmios, entre eles o Leão de Prata – Grande Prêmio do Júri, segunda categoria mais importante. Lembro da minha frustração ao perder sua exibição durante a correria da 48ª Mostra de SP no ano passado: entre compromissos e escolhas difíceis da programação, ele escorregou entre meus dedos. Agora, ao finalmente assisti-lo, entendi a ironia do destino. Vermiglio é exatamente o tipo de filme que provoca aquela sensação ambígua – você admira o ofício, mas se pergunta onde foi parar a centelha que justificava tanto entusiasmo inicial. A diretora Maura Delpero constrói uma obra visualmente deslumbrante, mas que, como a neve de seus cenários, é bonita, gélida e… surpreendentemente fácil de derreter da memória.
Delpero opta por uma abordagem naturalista, quase documental, com planos estáticos que observam a família de Cesare (Tommaso Ragno), um professor local e patriarca de sete filhos. A câmera não se apressa, como se fosse uma convidada discreta na casa, capturando gestos, olhares e silêncios. A fotografia, assinada por Mikhail Krichman, é deslumbrante – cada quadro parece uma pintura impressionista, com a luz do inverno alpino filtrando-se pelas janelas e a neve funcionando como um espelho das emoções contidas. Há uma intenção clara de criar um realismo poético, mas essa escolha estética, por mais bela que seja, acaba por engessar o drama.

O filme tenta equilibrar-se entre o íntimo e o épico, falando de uma família enquanto sugere uma crítica social mais ampla. Cesare é o centro desse microcosmo, um homem que dita os destinos dos filhos com a tranquilidade de quem acredita estar cumprindo uma ordem natural. Suas decisões – qual filha se casa, qual vira freira, qual estuda – são aceitas sem questionamentos violentos, mas isso não as torna menos opressivas. O patriarcado aqui não é gritante; é estrutural, impregnado no cotidiano como o frio que entra pelas frestas. A diretora explora isso com uma sensibilidade que, infelizmente, não se traduz em urgência narrativa.
Os personagens são esboçados com cuidado, mas poucos ganham profundidade. Dino (Patrick Gardner), o filho mais velho, carrega o peso da decepção paterna. Lúcia (Martina Scrinzi), a mais destacada das irmãs, vive um romance apressado com Pietro (Giuseppe De Domenico), cuja relação parece mais um dispositivo narrativo do que uma paixão orgânica. Ada (Rachele Potrich), a filha do meio, mergulha em penitências religiosas cada vez mais extremas, sugerindo culpas nunca totalmente reveladas. E Flávia (Anna Thaler), a caçula, é a mais interessante – uma menina que enxerga além das aparências, percebendo, por exemplo, que Pietro desenha corações porque não sabe escrever. Ela é a única que parece desafiar, ainda que silenciosamente, a autoridade do pai. No entanto, mesmo esses arcos são tratados com uma contenção que beira a frieza.

A montagem segue o ritmo lento da narrativa, com cortes espaçados que reforçam a sensação de imobilidade. Em um filme sobre opressão, essa escolha poderia ser poderosa – afinal, há algo de claustrofóbico naquela vida controlada por Cesare. Mas Delpero não explora essa tensão de forma satisfatória. Eventos importantes, como uma gravidez, uma partida ou uma crise familiar, são tratados com a mesma distância com que a câmera observa a paisagem. O resultado é um drama que, apesar de competente, raramente emociona.
Há signos espalhados por toda parte – a neve (pureza? isolamento?), a escola (controle?), as penitências de Ada (culpa católica?) –, mas eles parecem calculados demais, como se o filme estivesse seguindo um manual de simbolismo. Até a fofoca, elemento crucial em qualquer comunidade pequena, é subutilizada. Em um lugar onde todos se conhecem, as murmurações poderiam ser um motor narrativo, revelando conflitos ou desejos reprimidos. Em Vermiglio, porém, até os cochichos soam contidos.
A trilha sonora de Matteo Franceschini é outro ponto curioso, ela é quase inexistente. Os poucos momentos musicais são diegéticos – um violão tocado ao fundo, um canto religioso –, reforçando a ideia de realismo. Essa escolha poderia funcionar se o silêncio fosse preenchido por tensão ou subtexto, mas muitas vezes ele apenas amplifica a sensação de vazio.

Não faltam comparações possíveis para Vermiglio. A fotografia remete a “Narciso Negro”, o retrato de mulheres aprisionadas por convenções sociais ecoa “Histórias Cruzadas”, e o tom contemplativo lembra – bem de longe – os trabalhos da excelente Kelly Reichardt. O problema é que o filme não consegue se libertar dessas referências para encontrar uma voz própria.
Acredito que, não intencionalmente, Vermiglio é como a neve que cobre sua aldeia: bela, mas gelada. A diretora constrói um mundo visualmente hipnotizante, mas falha em nos fazer sentir o peso daquela existência. Talvez essa seja a ironia mais cruel do filme – ele fala sobre personagens presos em seus papéis, mas acaba também prisioneiro de sua própria estética. Quando os créditos rolam, ficamos com a impressão de que assistimos a um quadro magnífico, mas que, por algum motivo, nunca ganhou vida.
Leia outras críticas:
Adorei o filme.