Quando Esmir Filho anunciou seu novo longa, “Homem com H”, os fãs de cinema independente brasileiro imediatamente se voltaram para sua estreia, Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), um filme que encapsulou como poucos a angústia de uma geração que cresceu entre o tédio e a promessa de escape da internet. Com o lançamento do novo projeto, que promete explorar temas igualmente densos, é inevitável revisitar o filme que colocou o diretor no radar da crítica — e que, mais de 15 anos depois, segue atual em sua discussão sobre isolamento, arte e identidade digital.
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Para quem viveu a adolescência nos anos 2000, como eu, Os Famosos e os Duendes da Morte é mais que um filme: é um documento histórico de um mudo que ainda transitava entre o analógico e o digital. A história de Mr. Tambourine, o jovem que se refugia em blogs e conversas online enquanto sonha com um mundo além da neblina do Vale do Taquari, ecoa a experiência de muitos de nós que, naquela época, descobrimos na internet um espaço de pertencimento — ainda que precário. Assistir ao filme hoje, em um mundo onde a conexão é permanente e performática, é confrontar uma era em que estar online era um momento ritualístico, quase sagrado.
O filme de Esmir Filho dialoga não apenas com memórias pessoais (como a minha, de um adolescente obcecado por Bob Dylan e sites para baixar discografias), mas também com questões estruturais: a solidão como fenômeno de classe, a romantização trágica de figuras como Yoñlu (o músico gaúcho que se suicidou em 2006) e o mito da internet como democratizadora de vozes.
A internet como ritual
Em Os Famosos e os Duendes da Morte, a conexão dial-up e os blogs são portais para um mundo paralelo. O protagonista digita frases como “Longe é o lugar que a gente vive de verdade” enquanto a mãe o chama para o jantar — cena que resume a cisão entre o físico e o digital naquela época. Diferente do always on de hoje, a internet dos anos 2000 era um território a ser conquistado: era preciso esperar o sinal da rede, lidar com a linha telefônica ocupada e, acima de tudo, escolher o que compartilhar. Não havia algoritmos ditando consumo nem a pressão por curadoria de identidade.



Para jovens de cidades pequenas, como Mr. Tambourine, a internet era a única forma de acessar cultura alternativa. Descobrir Bob Dylan através de fóruns ou baixar discos raros era um ato de resistência — e de construção de identidade. Mas esse acesso não era universal: exigia um computador em casa, um provedor pago e, muitas vezes, um certo capital cultural para navegar em espaços nichados. Essa é uma das contradições do filme: a internet como refúgio, mas também como privilégio.
Yoñlu
A figura do jovem artista incompreendido que encontra na internet um espaço para existir — e que, em casos extremos, sucumbe ao próprio desespero — é central no filme de Esmir e na vida real. Yoñlu, pseudônimo de Vinicius Gageiro Marques, é o exemplo mais trágico: morto aos 16 anos, deixou um legado de músicas melancólicas que, postumamente, ganharam status de cult. Seu caso dialoga diretamente com J. Jingle Jangle, a personagem suicida do filme, cujos vídeos e poemas permanecem online como vestígios de uma vida interrompida.
Aqui, o filme escancara uma questão incômoda: a internet pode ser tanto um salva-vidas quanto um precipício. Para jovens como Yoñlu e Mr. Tambourine, a rede oferece um palco, mas também os expõe a solidões amplificadas. E enquanto a mídia tende a romantizar esses casos (transformando tragédias em mitos), Os Famosos e os Duendes da Morte evita o sensacionalismo. Em vez disso, mostra a rotina banal por trás da dor: as aulas monótonas, os pais ausentes, a ponte de ferro que vira símbolo de fuga.
Classe, raça e os limites do refúgio digital

Apesar de universal em seus temas, o filme de Esmir Filho é também um retrato de um Brasil específico: o do sul urbano-rural, majoritariamente branco e de classe média baixa. O protagonista tem tempo para o tédio e para a arte — luxos que muitos jovens periféricos não têm. Essa é uma crítica frequente à narrativa do “jovem artista introspectivo”: ela costuma ignorar que a possibilidade de se refugiar na internet (ou na música, ou na literatura) é, em si, um privilégio.
Para um adolescente negro da periferia, por exemplo, a realidade é outra: o acesso à cultura é mais restrito, e a pressão por sobrevivência deixa pouco espaço para melancolias existenciais. O filme não aborda isso diretamente, mas a obra de Esmir ganha novas camadas quando contrastada com produções como “Branco Sai, Preto Fica” ( de Adirley Queirós), que discutem a juventude negra e pobre em contextos radicalmente diferentes.
O legado de Os Famosos
Com Homem com H, Esmir Filho promete explorar novos terrenos, mas a temática parece manter seu interesse por personagens à margem. Se em Os Famosos era a adolescência no interior, agora o diretor se volta para um jovem adulto — talvez Ney fosse um Mr. Tambourine de sua época, confrontando as normais sociais, e expressando uma liberdade quase provilegiada para uma juventude que viveu sob um regime ditatorial.
Revisitar o primeiro filme do diretor hoje é também medir o quanto a relação com a internet mudou. Se antes ela era um refúgio, hoje é um labirinto do qual é quase impossível sair. E se Mr. Tambourine buscava conexão, nós agora sofremos de excesso dela. A pergunta que fica é: onde está a ponte de ferro para os jovens de hoje?

Assisti a Os Famosos e os Duendes da Morte pela primeira vez entre 2010 a 2012 (não lembro exatamente), no meu quarto, em um laptop com fones de ouvido — ironicamente, uma experiência próxima à do protagonista. Mais de uma década depois, o filme ainda me cutuca, não só pela nostalgia, mas por suas perguntas sem resposta.
Enquanto aguardamos Homem com H, o convite é retornar ao primeiro filme, que hoje é um registro de época, que reflete, ainda hoje, as dores e delícias de estar vivo — e conectado.
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