Empolgante, musical, escandaloso, necessário. Homem com H não tenta domar a vida de Ney Matogrosso — ele a celebra em estado bruto, vibrante, sem filtros. É um filme que dança, grita, beija, reage. É liberdade em forma de cinema, daqueles que não pedem licença e nem desculpas.
Jesuíta Barbosa não atua. Ele pulsa. A entrega é tamanha que não há espaço para dúvidas: não estamos vendo uma interpretação, estamos testemunhando uma incorporação. Nada ali soa estudado ou ensaiado demais. É corpo, é presença, é verdade. A cada gesto, a cada respiração, ele faz a tela tremer com a força de alguém que entendeu que Ney não se representa — se vive.
O roteiro respeita a trajetória real do artista com clareza. A narrativa segue a ordem dos acontecimentos, pontuando com cuidado os momentos decisivos da vida de Ney Matogrosso — da infância conturbada ao estouro nos palcos, passando pelos grandes amores, pela ditadura, pelos altos e baixos da fama e pelos reencontros com ele mesmo. É linear, mas longe de ser previsível.
Durante a coletiva de imprensa que aconteceu em São Paulo no dia da pré-estreia (23/04), Ney Matogrosso fez questão de deixar claro: “nada do que está no filme é inventado”. Aos 83 anos, com uma memória afiadíssima, ele acompanhou de perto o processo e garantiu que tudo o que vemos em tela faz parte da sua própria lembrança.
Alguns diálogos, claro, foram reescritos — não por invenção, mas por lapsos naturais de tempo. Ainda assim, o que está ali é memória viva, não ficção. Não há maquiagem emocional, não há fantasia para tornar a história mais “palatável”. O que se vê é o que foi. E talvez seja justamente por isso que tudo bate tão fundo.
O filme mergulha de cabeça em todas as camadas de Ney: o artista, o amante, o símbolo de resistência. O palco vira extensão do corpo, os amores surgem com intensidade e desaparecem com a mesma velocidade, e a censura bate à porta tentando calar o que nunca foi calável. Ney enfrenta tudo isso de peito aberto, glitter no rosto e postura ereta. É arte como escudo.
As 15 músicas que atravessam a narrativa são motores da ação, não enfeites. Elas falam por Ney quando as palavras falham, traduzem desejos, dores e rebeldias. Cada performance é pensada para incendiar, e incendeia! O figurino não fica atrás: deslumbrante, provocativo, cheio de significados. Cada peça escolhida é parte da narrativa, e não adereço, e são únicos também.
É impressionante como a câmera acompanha esse corpo em constante combustão sem jamais tentar podá-lo. O filme sabe quando se aproximar e quando deixar Ney dominar sozinho. Há algo quase hipnótico na forma como ele se movimenta, como canta com o olhar, como diz tudo com um simples giro de quadril. A direção respeita isso e valoriza a imagem sem transformá-la em vitrine.
Nos bastidores, no camarim, nos momentos de solidão, a gente também vê as rachaduras. Mas o filme não dramatiza demais essas dores — ele as insere com delicadeza, permitindo que o silêncio também fale. E mais uma vez, é nessa quietude que Jesuíta prova sua grandeza. Um olhar bastou para fazer o cinema inteiro entender o peso de viver em constante estado de alerta.
Ney nunca foi figura fácil de se enquadrar, e o longa respeita isso. Não tenta explicar quem ele é, nem dar respostas prontas, ele apenas mostra, e permite que o público sinta. O resultado disso tudo é um retrato potente de alguém que sempre teve coragem de ser o que era, mesmo quando isso custava caro.
Os romances, os casos, os vínculos breves e os dois grandes amores da trama não são tratados como “escândalos” ou “curiosidades” — são partes fundamentais da construção de um homem que amava com o mesmo ímpeto com que cantava. E o filme os retrata com sensibilidade e intensidade, sem se esconder atrás de censuras disfarçadas.
Em muitos momentos, o filme mostra que viver em liberdade exige coragem — e cansa. Mas pra alguém como Ney, não havia outra escolha: ou era inteiro, ou não era.

As cenas de palco são arrebatadoras. Há momentos em que a música estoura na tela e o público se vê em transe. São minutos em que o tempo pára e só o que importa é aquela presença iluminada no centro da cena e, são nesses instantes que se entende a dimensão do artista: ele não só cantava — ele comandava forças invisíveis.
Não há como falar do longa sem elogiar a coragem estética. É um filme que não tem medo de ser exagerado quando precisa, sensual quando quer, político quando é inevitável. Ele sabe que Ney sempre usou o corpo como bandeira e a arte como forma de contestação. E traduz isso com fidelidade.
Esmir Filho, que assina roteiro e direção, tem o mérito de orquestrar tudo isso sem perder o fio. Ele não interfere demais, não tenta dar forma ao que já nasceu sem forma. Sua condução é firme, mas aberta ao improviso, ele entende que o melhor que se pode fazer ao contar a história de Ney é deixar que o próprio Ney fale por si — e fala.
Mas é importante reforçar: nada disso funcionaria se não fosse pela entrega monumental de Jesuíta. Ele não apenas convence — ele comove, envolve, e faz o público esquecer por duas horas que Ney não está ali fisicamente. É daquelas atuações que ficam gravadas na memória por muito tempo.
O filme emociona por ser verdadeiro. Por não dourar pílulas, por não tentar tornar “palatável” aquilo que sempre foi marginalizado. Ele mostra que é possível fazer cinema ousado, belo e político ao mesmo tempo — e ainda colocar o público pra cantar junto.
Homem com H não é só uma homenagem. É um espelho. Um lembrete de que viver com intensidade, com desejo e sem medo ainda é um ato de resistência. Ney continua sendo necessário. E esse filme também.
Entre muitos peguetes e dois amores que queimam e cortam, Homem com H também é sobre amor próprio, sobre a coragem de existir por inteiro. Ney nunca quis caber em nenhuma caixinha, e o filme honra isso com uma linguagem tão provocadora quanto ele. É cinema que se pinta, se despe, se reinventa — como ele sempre fez.
E já que estamos falando de cinebiografias: Homem com H mostra com estilo, alma e verdade como se faz uma homenagem digna. Enquanto isso, “Mamonas Assassinas – O Filme” (2023) continua firme e forte no ranking das piores tentativas de contar a história de um artista musical. E não é hate, é só realidade mesmo.
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