Crítica | Remake de Emmanuelle aponta que até o prazer se tornou mercadoria
Imovision/Divulgação

Crítica | Remake de Emmanuelle aponta que até o prazer se tornou mercadoria

Há certos nomes no cinema que carregam um peso histórico — e Emmanuelle é um deles, pelo menos no Brasil. A franquia se tornou quase um mito urbano, exibida nas madrugadas da TV aberta como um símbolo do erotismo quase proibido. Para muitos, foi a primeira (e desajeitada) introdução ao pornô softcore, assistida às escondidas, mais por curiosidade adolescente do que por apreciação cinematográfica.

Agora, Audrey Diwan, diretora premiada com “O Acontecimento”, resgata essa figura icônica e a joga contra os espelhos do capitalismo contemporâneo. O resultado é um filme propositalmente incômodo ao ser um filme com erotismo frontal tomado por um comentário afiado sobre a alienação do prazer na era da produtividade tóxica.

A primeira coisa que salta aos olhos desse remake de Emmanuelle é a fotografia de Laurent Tangy. Hong Kong funciona como uma extensão da psique da protagonista. Os néons da cidade refletem-se nos vidros dos arranha-céus como labirintos de luz — um visual que remete ao cyberpunk, mas sem os excessos futuristas. Diwan e Tangy constroem um ambiente opressivo, onde o luxo dos hotéis cinco estrelas esconde a frieza de um sistema que reduz pessoas a engrenagens.

Os quartos de hotel, com seus tons de madeira escura e cortinas pesadas, parecem cenários de um teatro noir. A câmera, muitas vezes estática, observa Emmanuelle (Noémie Merlant) como se ela estivesse presa num aquário. Quando o enquadramento se abre, é para mostrar a vastidão anônima da cidade, reforçando sua solidão. Há um contraste deliberado entre os interiores claustrofóbicos e os exteriores iluminados — técnica que evoca Antonioni, especialmente “O Eclipse” (1962), onde a arquitetura moderna era metáfora para a desconexão humana.

Merlant, conhecida por “Retrato de uma Jovem em Chamas”, entrega uma atuação minimalista e poderosa. Seu rosto é um mapa de ambiguidades: ela pode parecer inexpressiva num momento e, no seguinte, transmitir uma angústia quase palpável. A personagem é uma executiva eficiente, mas emocionalmente anestesiada — alguém que avalia até relações sexuais com a frieza de um relatório corporativo.

O roteiro, escrito por Diwan e Rebecca Zlotowski, não a transforma numa heroína libertária clichê. Emmanuelle não “descobre o prazer” como num conto de fadas; ela o persegue como quem tenta preencher um buraco existencial. As cenas de sexo mostram a mecânica do desejo sob a lupa do capitalismo: relações que parecem transações, corpos que viram produtos. A sequência no bar de karaokê, onde Merlant canta “I’m Every Woman” com um misto de ironia e desespero, é um dos momentos mais reveladores do filme.

Muitas das críticas negativas a Emmanuelle caem num moralismo surpreendente. Acusam o filme de ser “apenas softcore” ou de “glamourizar a promiscuidade”. Mas essa leitura ignora o contexto: a obra é uma releitura feminista de uma franquia que, nos anos 1970, era vista através de uma lente masculina. Diwan subverte isso ao colocar a câmera sob o olhar de Emmanuelle — não dos homens ao seu redor.

As cenas íntimas, aliás, são filmadas com uma sensualidade que privilegia o tato, os sons e os gestos, não a exposição gratuita. A trilha dos irmãos Evgueni e Sacha Galperine ajuda a criar um clima de suspense quase hitchcockiano, como se o verdadeiro mistério não fosse “quem ela vai transar”, mas “por que isso não a satisfaz”.

O filme é mais inteligente do que parece. Emmanuelle trabalha numa empresa que fabrica “sensores de prazer” — sim, a ironia é deliberada. Seu chefe (Anthony Wong) trata funcionários como algoritmos, e até o sexo vira uma métrica de desempenho. Numa cena brilhante, ela avalia um amante com a mesma frieza com que analisaria um gráfico de lucros.

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Essa crítica ao capitalismo não é sutil, mas também não é panfletária. Diwan mostra como a busca pelo prazer virou mais uma commodity, algo a ser otimizado e monetizado. A cena final, onde Emmanuelle finalmente experimenta algo próximo da libertação, não é triunfante: é melancólica, quase um suspiro diante de um sistema que continuará intacto.

Emmanuelle ritmo é lento, alguns diálogos soam artificiais, e o tom oscila entre o cerebral e o melodramático. Mas é aquele tipo de ramake que justifica sua existência — não que o mercado se importe com uma justificativa — pegando uma obra que se tornou sinônimo de soft pornô pela visão masculina, agora abordando a sexualidade feminina a partir da visão de mulheres, não só na direção, como na escrita e direção de fotografia.

A obra de Diwan não quer chocar; quer questionar. Se nos anos 70 a franquia era vista como mero entretenimento para homens, hoje ela ressurge refletindo não só o desejo, mas a solidão de quem tenta encontrá-lo num mundo que transforma tudo em mercadoria.

O mesmo filme que um dia foi assistido às escondidas por adolescentes ávidos por cenas picantes agora exige um público disposto a encarar o vazio que há por trás do prazer — e, quem sabe, enxergar nele um pouco de si mesmo.

Emmanuelle é um dos filmes que compõem o 1º Festival de Cinema Europeu Imovision, confira a programação completa aqui.

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Resultado de uma experiência alquímica que envolvia gibis, discos e um projetor valvulado. Editor-chefe, crítico, roteirista, nortista e traficante cultural.