Alguns filmes não se contentam em ser apenas assistidos — eles exigem ser sentidos. Pecadores, novo filme de Ryan Coogler, é uma dessas raras obras que invade a pele do espectador como um espírito inquieto, misturando suor, música e sangue em uma narrativa que é tanto um conto de horror quanto um manifesto sobre memória e resistência. Se “Fruitvale Station: A Última Parada” e “Pantera Negra” já haviam mostrado o compromisso do diretor com histórias negras, aqui ele vai além: transforma o passado em um ritual, onde os fantasmas da escravidão e do racismo não são apenas metáforas, mas criaturas literais, sugadoras de vida, que precisam ser enfrentadas com fé, fúria e os acordes de uma guitarra.
Ambientado no Mississippi dos anos 1930, o filme acompanha os irmãos gêmeos Fumaça e Fuligem (ambos interpretados por Michael B. Jordan), veteranos da Primeira Guerra que retornam ao Sul para erguer um juke joint — um bar clandestino onde o blues era mais do que música, era um grito de existência. O local, escondido entre as árvores, logo se enche de vidas marcadas pela segregação: Sammie (Miles Caton), um jovem guitarrista — embora toque um violão — com um dom que beira o sobrenatural Delta Slim (Delroy Lindo), um ancião cujo harmônica carrega tanto lamento quanto sabedoria; e uma comunidade que, sem saber, está prestes a enfrentar uma ameaça ancestral. Quando a música de Sammie atrai vampiros que se disfarçam de amigos, o filme mergulha em um frenesi que lembra “Um Drink no Inferno”, mas com uma profundidade racial que só um realizador como Coogler poderia trazer.
Ancestralidade Visual
Coogler e a diretora de fotografia Rachel Morrison (sua parceira desde Fruitvale Station) optaram por filmar em 65mm e IMAX, uma escolha que poderia parecer exagerada para um filme com tantas cenas noturnas, mas que se revela . Os campos de algodão, filmados em luz dourada, não são apenas paisagens — são testemunhas. A câmera os enquadra como se fossem personagens, vastos e silenciosos, carregando o peso de séculos de exploração. Quando a ação se move para o interior do bar, o formato muda: os planos ficam mais apertados, quase claustrofóbicos, como se a câmera estivesse sendo espremida junto com aquelas pessoas.
A iluminação joga com o sagrado e o profano. As cenas noturnas são banhadas em tons de vermelho e âmbar, como fogueiras em meio à escuridão, enquanto os vampiros surgem envoltos em sombras azuladas — uma referência sutil aos haints, espíritos do folclore negro do Sul. Coogler também usa planos-sequência para criar um efeito de transe, especialmente na cena em que Sammie toca seu violão e a câmera dança entre os corpos, como se fosse conduzida pelos próprios ancestrais.

Reza e Revolta
A trilha sonora de Ludwig Göransson (que já colaborou com Coogler em Pantera Negra) não é apenas fundo musical — é um personagem. Misturando blues tradicional com elementos de soul e até hip-hop, ele cria uma ponte entre o passado e o presente. Em uma cena antológica, Sammie toca uma música que, em um único plano-sequência, nos leva por décadas de história, desde os campos de algodão até os palcos modernos. É um momento que lembra Crossroads (1986).

Aqui, o blues não é apenas “o diabo na música”, como dizia a lenda de Robert Johnson. É um feitiço de resistência, uma forma de conjurar os ancestrais. Os vampiros, curiosamente, são atraídos por essa força — uma metáfora óbvia, porém poderosa, sobre como a cultura negra foi (e ainda é) devorada por sistemas de poder. Em certo momento, um vampiro irlandês (Jack O’Connell) tenta roubar a melodia de Sammie, num paralelo direto com a apropriação cultural que marcou a história da música americana.
Michael B. Jordan, em sua colaboração mais ousada com Coogler, interpreta Fumaça e Fuligem com uma dualidade que vai além do físico. Fumaça é charmoso, quase um sedutor, enquanto Fuligem é fechado, carregando cicatrizes invisíveis. Jordan diferencia os dois não apenas pela voz ou postura, mas pela energia — um parece fluir como o rio Mississippi, o outro é duro como pedra. Há uma cena em que os dois discutem seu passado, e a câmera alterna entre seus rostos em closes tão apertados que quase podemos sentir o calor daquela rixa fraternal.

Mas é Miles Caton, em sua estreia no cinema, quem rouba a cena. Sammie é o elo entre o terreno e o espiritual, um jovem cujo dom musical é tanto uma bênção quanto uma maldição. Caton transmite uma inocência que não é fragilidade — quando ele toca, há algo ancestral em seus olhos, como se estivesse canalizando vozes antigas. Sua atuação durante o ápice do filme, quando a música se torna um chamado aos espíritos, é de cortar o fôlego.
O Ritual
Pecadores peca por um primeiro ato arrastado (mais de 130 minutos é tempo demais) e por diálogos que, em momentos pontuais, soam mais explicativos do que orgânicos. As cenas pós-créditos, embora emocionantes (especialmente a que mostra um descendente de Sammie no presente), quebram o ritmo do final.

Mas esses são pecados menores diante do que o filme acerta. Coogler não faz um filme sobre o passado — ele faz um filme sobre como o passado nunca vai embora. Os vampiros aqui não são apenas monstros, são a personificação de uma história que insiste em drenar a vida do presente. E a única forma de vencê-los é lembrando quem veio antes, honrando suas lutas e, acima de tudo, mantendo sua música viva.
Pecadores é um ritual cinematográfico. E como todo ritual, ele não termina quando as luzes se acendem — ecoa. Nos olhos do espectador, nas batidas do coração, nos acordes de uma guitarra que ainda ressoam, como um chamado dos ancestrais.
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