Meu gosto musical foi sendo criado na época que New Metal era tão popular que todas as tribos ouviam um Linkin Park casualmente. Embora nunca tenha sido fã da banda, passei por todas essas Limp Bizkit, Deftones, Slipknot e consequentemente System of a Down, que apareceu como um soco no estômago — não apenas pela música, mas pelo que ela carregava. Eles não eram apenas uma banda; eram um manifesto ambulante, uma denúncia em forma de distorção. E, no último domingo, 11 de maio, Dia das Mães, no Allianz Parque, eles fizeram mais do que um show: transformaram 50 mil pessoas em cúmplices de um ato de resistência sonora.
Era nítido que a noite seria diferente desde a chegada. O Allianz Parque, que em outras ocasiões me fez questionar se eu tinha perdido parte da audição (sim, estou falando do show do Eric Clapton), dessa vez estava impecável. O som chegava limpo, cada instrumento no lugar certo, os graves não engolindo os vocais — um milagre para um estádio que, até então, só me dera decepções acústicas.
O show começou pontualmente às 21h, com “X” explodindo nos alto-falantes como um aviso: não haveria acolhimento, não haverá piedade. Curta e com ritmo acelerado, a canção parece ter sido escolhida como um aquecer dos motores, sobretudo para a bateria de John Dolmayan, que entrou como uma metralhadora, a guitarra cortante de Daron Malakian, e Serj Tankian apareceu no palco com aquela postura de professor enfurecido que sempre teve. A plateia, que até então respirava ansiosa, virou um único organismo pulando em uníssono. Quando “Prison Song” começou, os telões mostraram números sobre o sistema carcerário americano, mas ninguém precisava ler – a música já dizia tudo, e o Allianz gritou junto cada palavra.
Mas foi durante “Aerials”, logo em seguida, que o estádio realmente pegou fogo. De repente, o chão tremeu com tanta gente pulando ao mesmo tempo. Rodinhas de mosh se abriram como redemoinhos humanos, gente caindo e sendo levantada antes mesmo de tocar no chão. Malakian, com seu chapéu ridículo e maquiagem de palhaço triste, parecia estar se divertindo mais que todo mundo – ele pulava, fazia caretas, e em “I-E-A-I-A-I-O” até fez uma dancinha provando que nem todo músico é amigo do ritmo.
O momento mais bonito veio sem aviso. Acredito que quando começou “Soldier Side”, quando as luzes dos celulares do estádio formaram a bandeira da Armênia – azul, vermelho e laranja tremulando no meio de São Paulo. Tankian, que normalmente mantém a postura séria, parou por um segundo, olhou para aquilo tudo e fez algo raro: sorriu. Não aquele sorriso de “obrigado pelo aplauso”, mas aquele sorriso de quem vê algo que não esperava mais ver. Malakian, ao lado, simplesmente começou a tocar mais forte, como se aquelas luzes tivessem dado um gás extra.
Momento histórico: Fans de System Of A Down alzaron sus luces para formar la bandera de Armenia durante el segundo show en São Paulo.
— GM (@arroba_gerzon) May 12, 2025
El homenaje conmovedor al legado armenio de SOAD en el Allianz Parque, arrancó aplausos y gritos en medio de tonos amarillos, azules y naranja. https://t.co/QAAwQJGLGQ pic.twitter.com/qgu89RYNn3
A parte política nunca ficou de lado. Em “B.Y.O.B.”, os telões mostravam mensagens como “sofrimento humano: agora em 4K” e “paz: adiada indefinidamente”. Mas o System sempre soube equilibrar o protesto com o absurdo. Prova disso foi quando Malakian dedicou “Cigaro” – sim, aquela que fala sobre tamanhos de genitálias — “para todas as mães presentes”. Ele mesmo riu da piada ruim antes de partir para “Roulette”, que ele apresentou como “uma música linda sobre coisas não tão lindas”.
Quando os primeiros acordes de “Chop Suey!” começaram, o estádio simplesmente desabou. Gritos, pulos, gente chorando – tudo ao mesmo tempo. Foi uma daquelas músicas que todo mundo cantou não só o refrão, mas cada verso, cada grito, cada respiração entre os acordes. Shavo Odadjian, de tênis verde e amarelo (ninguém sabe se de propósito ou não), pulava no palco como se tivesse 20 anos, apontando para a plateia como quem diz “isso aqui é nosso”.
O clímax, claro, veio com “Toxicity”. A introdução limpa da música engana – quando o primeiro refrão veio, foi como se o chão do Allianz Parque tivesse cedido. Sinalizadores vermelhos acenderam em várias partes do estádio, criando um efeito de sangue escorrendo pelas arquibancadas. 50 mil vozes cantaram como se aquela linha fosse a coisa mais importante do mundo.
O final com “Sugar” foi perfeito — curto, brutal e sem chance de recuperação. Quando a banda deixou o palco, o estádio continuou cantando o riff por uns bons minutos, como se ninguém quisesse acreditar que tinha acabado. Eu fiquei parado no meio da multidão, ouvindo zumbidos nos ouvidos, com a roupa encharcada de suor (meu e dos outros), e com uma sensação estranha: aquela música tinha quase 30 anos, mas parecia ter sido escrita ontem.
Quando finalmente saí do Allianz Parque, passando por grupos de pessoas que ainda cantarolavam Chop Suey! eu me lembrei da primeira vez que ouvi System of a Down. Eu devia ter uns 13, 14 anos, não entendia metade das letras, mas depois de pesquisar a tradução delas, foi minha primeira fagulha crítica e política. Agora, adulto, depois de ver o estádio formar a bandeira da Armênia com celulares, depois de gritar “Wake up!” junto com 50 mil pessoas, depois de ver Tankian sorrir daquele jeito raro, eu finalmente entendi o porquê. Algumas bandas fazem shows. O System of a Down faz revoluções disfarçadas de caos — e a gente ama cada minuto.
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